“Onde está o mandado?” Limites ao ingresso policial nas residências brasileiras

A ativista e Promotora Legal Popular (PLP) Jane Beatriz Silva Nunes tinha 60 anos quando foi morta em sua casa na vila Cruzeiro, periferia de Porto Alegre. Sua morte, ocorrida durante ação da Brigada Militar (BM), traz o debate – sempre atual – da truculência policial nesses espaços.

Segundo relato de moradores, Jane havia chegado em casa quando foi surpreendida por policiais dentro de sua residência. A casa é, por direito fundamental constitucional, inviolável¹ , ninguém nela pode penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.

Para o Instituto-Geral de Perícias, a causa da morte de Jane foi o rompimento espontâneo de um aneurisma cerebral, porém, a ONG Themis já informou que irá recorrer ao laudo. Mas, o questionamento de Jane e aqui é: onde está o mandado judicial devidamente fundamentado que justificaria a entrada da Polícia na residência da Promotora Legal Popular? No Brasil, existem limites expressos ao ingresso policial nas residências – e valem para todos?

A busca domiciliar pode ocorrer: 1- a partir do consentimento válido do morador, durante o dia ou a noite. Como consentimento válido tem-se o dito por morador com plena consciência, não admitindo violências. Lembrando que a qualquer momento pode o morador interromper o consentimento dado, expulsando os agentes. 2- Em caso de flagrante delito, durante o dia ou a noite. Aqui parte da jurisprudência e doutrina exigem que a polícia comprove de que forma soube a ocorrência do crime que visa flagrar e cessar. O Supremo Tribunal Federal (STF) diz que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados. Essas “fundadas razões” não são suspeitas, imaginações ou ilusões.

Dessa forma, não basta que o policial imagine a ocorrência de um crime ou diga que recebeu uma denúncia anônima sem dar informações ou que aquela residência “seria” de um traficante famoso. Se isso ocorrer, a atuação policial será abusiva e inconstitucional, por violação ao domicílio do agente, mesmo que se confirme a sua imaginação, conforme Aury Lopes Júnior³.

Sem ocorrência de delito flagrante, consentimento ou 3- prestação de socorro, os policiais SÓ poderão ingressar mediante: 4- ordem judicial, somente durante o dia das 6h às 20h e devidamente fundamentada, não se admite mandado judicial genérico, coletivo ou por “varredura”, entrando em qualquer casa sem constar a rua, o número da casa, o bairro e o nome do morador³. Afinal, qual a diferença da entrada de um policial no domicílio ou a entrada de qualquer pessoa? Os dois não são estranhos?

Se esses limites existem e, em alguns territórios ou para algumas pessoas, não são respeitados, violando, assim, os direitos humanos, o que adianta? Justamente, precisa-se conhecê-los e exigir a sua observância. Sabe-se que é difícil se rebelar contra ações violentas em espaços e com sujeitos historicamente violados, afinal, conforme o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a população negra tende a ser mais vitimada pela violência policial⁴  então, existe o medo da morte. Em países com herança escravocrata e onde o racismo é estrutural, a pauta dos direitos humanos precisa ser defendida por todas e todos, inclusive pessoas que não sofrem violações devem compor a luta por uma sociedade menos desigual. Devem-se difundir, por meio do empoderamento legal, os direitos fundamentais e as garantias processuais e denunciar, frisar, gritar, protestar, escrever, movimentar advogados e advogadas, as defensorias públicas estadual e da união, o Ministério Público, comissões da OAB, vereadores, deputados, organizações, coletivos, e todos os aliados em direitos humanos para que haja SOMENTE respeito ao que está na Constituição da República Federativa do Brasil e no Código de Processo Penal, nada mais.

Pela memória de Jane e por todas as outras vítimas. Pela apuração rigorosa do que ocorreu no dia 08 de dezembro de 2020.

Em caso de violência policial ou possíveis ilegalidades:

Ligue para a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul – Alô Defensoria: (51) 3225-0777;

Procure o Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH), unidade da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul (DPE/RS), localizada na Rua Siqueira Campos, 731, Centro Histórico, Porto Alegre/RS. Telefone: 0800-644-5556 – Ligação gratuita para todo o estado.

Realize denúncia para o Ministério Público: https://www.mprs.mp.br/atendimento/paginas/orientacoes-sobre-denuncia/

Procure a THEMIS – Gênero, Justiça e Direitos Humanos: http://themis.org.br

Informa-se sobre a Lei nº 13.869/2019 (Lei sobre o abuso de autoridade)

Envie mensagem para a Comissão de Direitos Humanos Sobral Pinto da OAB/RS: comissoesespeciaissec2@oabrs.org.br

Busque o Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da UFRGS – SAJU: http://www.ufrgs.br/saju/como-ser-atendido-a

Disque 100, telefone que recebe denúncias que envolvam violações de direitos de toda a população;

Envie mensagem para o e-mail disquedireitoshumanos@sdh.gov.br;

Notas:

1 Inciso XI do Artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil.

2 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. – 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 564.

3 Art. 243 do Código de Processo Penal.

4 FBSP, 2020, p. 91.

                                                          Foto: Ricardo Giusti

Texto de Opinião de Ivana Oliveira Giovanaz, estudante de Direito na PUCRS e integrante da Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil em Porto Alegre.