Vimos recentemente que uma das características do cinema é ser uma imagem fotografada 24 vezes por segundo (24 fps, frames per seconds), uma coleção de imagens em movimento montadas em uma ordem narrativa. Também faz parte do cinema a atuação de atores, a movimentação desses em cena, a fotografia, a trilha sonora, etc. Hoje vamos falar um pouquinho dessa última e de seu papel na construção do significado dos filmes.
O cinema, como sabemos, era mudo, e até meados dos anos 20 seguiu assim. Para acompanhar as imagens e às vezes frases que apareciam na tela, contribuindo com a narrativa do filme, alguém teve a ideia de adicionar, ao fundo, uma composição musical, até onde sei sempre instrumental. (Não sei como era o mercado da música erudita nesse tempo, e claro que há diferenças abissais entre Europa e EUA e outras partes do mundo, por exemplo, mas esse fato de colocar música como constitutiva do filme empregou muitos músicos, maestros, etc. Ainda hoje é assim, um nicho de trabalho para uma ocupação – músico erudito – que parece escassear.) Imaginem como devia ser interessante – e há algumas iniciativas disso hoje em dia – acompanhar o filme na tela e ouvir a execução da música ao vivo.
Estou entendendo como trilha sonora todo som sobreposto às imagens do filme, em contraste com aqueles sons chamados “diegéticos”, que são os sons das cenas mesmo, como o ranger de uma porta, como o barulho do vento, etc. A trilha sonora de música instrumental é muito usada até hoje, e nos primórdios do cinema ocupou papel fundamental de complemento ao significado do filme: o Expressionismo Alemão, com aqueles cenários sombrios e disformes, cheios de luz e sombra, representando metaforicamente um mundo imerso no horror do período entre guerras, encontra eco na trilha sonora que acompanhava os filmes, que através de outra linguagem, a musica, buscava contribuir para a ambiência que o filme colocava. (Um filme que não é expressionista, O inferno, de 1911, recebeu trilha sonora só nos anos 1960, salvo engano. Aqui acho que foi um erro, pois era uma música de 50 anos depois, portanto em outra conjuntura histórica, e a meu juízo a trilha é moderna demais e destoa do filme.)
Nos anos 30 o cinema americano viveu seu primeiro auge, muito devido aos musicais. Em musicais, a trilha sonora é o próprio som do filme, ao menos uma parte dela, e é de se pensar se então chamamos os sons das cenas, diegéticos, de trilha sonora. É para pensarmos.
O período da década de 60 foi marcado por um conjunto de rupturas estéticas no cinema a que se deu o nome nouvelle vague, “nova onda” em tradução literal. O nome é francês porque o movimento surge na França. Se trata então de uma nova forma de fazer cinema, em que a estética antirrealista toma protagonismo. Consequentemente a trilha sonora vai cambiar também, passará a acompanhar o às vezes non sense desse cinema. Trilhas erráticas, às vezes parecendo destoar das cenas que aparecem na tela e não mais com sentido de complemento, passam a ser opções dos diretores. Lembro aqui um caso interessante que é Zazie no metrô.
Andrei Tarkovski, um dos maiores diretores de cinema do mundo, usou muito da trilha sonora, quase sempre instrumental, cujo sentido era de complemento. Aquelas paisagens bucólicas, às vezes oníricas, encontravam correlação com as trilhas belamente escolhidas pelo diretor. Estamos nos anos 70, e quase aqui, 1968, Kubrick lançava a obra-prima 2001: uma odisséia no espaço. A escolha por trilhas eruditas já conhecidas e consagradas dá uma sensação interessante para os filmes: quando toca Danúbio Azul no ballet das naves ou Assim falava Zarathustra mostrando a aurora da humanidade, a descoberta da arma, essas músicas de Strauss já entram em cena com um peso simbólico de obras de arte reconhecíveis. Até que ponde elas são autônomas ou correspondem a um sentido fílmico é algo a ser pensado. O que é importante marcar é que Kubrick é também um que está no top 5 de direção e que sabia muito bem o que escolhia para seus filmes. A música perturbadora de Laranja mecânica, a onírica de De olhos bem fechados, a erudita de Barry Lyndon.
Nos anos 70 e 80 há casos maravilhosos de consonância da trilha com a imagem, mas que creio há uma relativa independência da trilha sonora: são os casos de O poderoso chefão e da trilogia da América de Sergio Leone. Um caso que queria comentar é o de Apocalypse now, que faz uma conjunção interessante: o início sugestivo com “The end”, do The doors, justaposta à cena de uma floresta explodindo na Guerra do Vietnã. Aqui já vemos que a música popular, digamos, a que não é erudita, já faz parte do cinema, já é possibilidade. Apocalypse now se vale também de A cavalgada das Valquírias, cuja metáfora com os helicópteros de guerra funciona bem (descobri agora fazendo esse texto que essa música também foi tema de O nascimento de uma nação, aquele filme de 1915 que exaltava a ku klux klan.)
Nos anos 90 um movimento chamado Dogma 95 faz de sua trilha o silêncio. Ou melhor, prega que não haja trilha sonora, pois acreditavam que o cinema devia retratar a realidade tal como ela é, uma utopia da representação, porque a representação é sempre uma representação, não a realidade em si. O movimento pregava um cinema “naturalista”, tentando aproximar o filme da vida, então não usavam trilha sonora, não gravam em estúdio, não usavam tripé.
São muitas as possibilidades de realização cinematográfica se valendo da trilha sonora, seja como complemento, seja como um objeto relativamente independente – Morricone entendia assim, a música como elemento independente do filme. Acho que não há como ser assim porque uma vez dentro do filme, faz parte de um objeto maior, o filme, que inclui várias coisas, dentre elas a música.
Enfim, espero ter contribuído de modo simples pra um debate que é bem interessante: a trilha sonora no cinema.
Rodrigo Mendes
Imagem da capa: Enio Morricone e Sergio Leone. Morricone morreu esse ano a 6 de julho.