AGOSTO: um mês que nos ensina a lutar!

Em 19 de agosto de 1983, após serem proíbidas de distribuir um jornal com conteúdo voltado para a homossexualidade feminina em um bar paulistano, mulheres lésbicas invadiram o estabelecimento, ocupando o espaço para fazer a leitura de um manifesto que tratava sobre seus direitos e liberdade sexual. Acontecimento que ficou conhecido entre os ativistas LGBT’s como ‘Stonewall’ brasileiro e forneceu uma data ao dia do Orgulho Lésbico, mas que pouco é levado em consideração na história de luta e trajetória LGBT no Brasil. Um ponto de partida essencial para a discussão da invisibilidade lésbica é: onde estão as referências para uma organização política do movimento LGBT?  – Atos de pressão popular que desempenharam algum papel na nossa história de luta. Por que pouco se fala sobre a origem do dia do Orgulho Lésbico?

A Filipa de Sousa que ficou para trás e o ‘Stonewall’ brasileiro

Em 1983, as lésbicas invadiram o Ferro’s Bar no episódio conhecido como ‘Stonewall’ brasileiro.

O caso ocorreu em plena Ditadura Militar no Brasil, no estabelecimento Ferro’s Bar, um bar no centro de São Paulo próximo à avenida 9 de julho (ao lado do bar Riviera –  onde se reuniam acadêmicos e artistas de esquerda) que conquistou a comunidade lésbica e bissexual, se tornando um ponto de encontro tanto para discussões políticas, quanto para um happy hour. Lá eram distribuídas, não por o acaso, o jornal Chanacomchana, um boletim organizado pelo GALF (Grupo Ação Lésbica Feminista).

O GALF e o Chanacomchana foram fundados a partir das relações do Grupo Somos de Afirmação Homossexual e do jornal Lampião da Esquina, jornal que fugia aos padrões impostos pela censura da época por tratar de temas como racismo, LGBTfobia e críticas políticas ao regime militar.

Jornal Lampião da Esquina: edição publicada em conjunto com o SOMOS.

Quando construído, o GALF “atuava dentro do gueto de lésbicas vendendo boletins, panfletava folhetos de conscientização sobre discriminação e violência contra as lésbicas e divulgava as atividades do grupo. Atuou fortemente contra a onda de prisões arbitrárias, de torturas e de extorsão comandadas pelo delegado José Wilson Richetti a partir de abril de 1980, ainda durante a ditadura civil-militar de 1964“. Sem contar que esse grupo foi um dos agentes diretos responsáveis pela primeira passeata LGBT da cidade de São Paulo. Se posicionando fortemente contrário à Ditadura e pressionando o governo constantemente através do trabalho de base que exercia.

Integrantes do Somos, GALF e SOS Mulher na sede do GALF, junho de 1983 (Acervo Rede de Informação – Um outro olhar)

Por isso que quando o dono do Ferro’s Bar, na noite do dia 23 de julho de 1983 expulsou integrantes do GALF por estarem distribuindo seus folhetos e o jornal Chanacomchana, acusando-as de estar atentando contra a moral e proibiu-as de voltar lá, chutou um formigueiro.

Assim, 27 dias depois do ocorrido, em 19 de agosto de 1983, as lésbicas e bissexuais se revoltaram e para responder à altura da atitude do dono do bar, se apossaram do local, entrando à força, para realizar um ato pelo direito das mulheres homossexuais e a leitura de um manifesto político publicado no tal jornal “proíbido”. Ocasionando na liberação do jornal e no pedido de desculpas do dono do estabelecimento.

Edição do Boletim ‘Chanacomchana’ que abordou o evento ocorrido dia 19 de agosto.

Diferente de Filipa de Sousa e as outras 28 mulheres, que foram expulsas da Capitânia da Bahia em 1591 por “práticas nefandas” – sexo com outras mulheres – e nunca mais ouvimos falar delas ou de alguma revolta que pudera ter acontecido na  época, o exemplo do ‘Stonewall’ brasileiro é um evento histórico para a comunidade LGBT que deve ser reproduzido por abordar uma ideia relacionada à reação política através da prática militante; o ato não ocorreu espontaneamente, está atrelado à uma organização prévia feita pelo movimento lésbico que urgia na época.

O levante ao Ferro’s Bar. Em 1983, as lésbicas invadiram o Ferro’s Bar no episódio conhecido como ‘Stonewall’ brasileiro.

A inércia deve ficar no século XVI.

Um acontecimento como o do dia 19 de agosto de 1983 não pode se deixar invisibilizar, não pode se deixar esquecer e não pode se deixar ofuscar pela tragédia de sermos expulsas e excomungadas misoginamente em 1591, mas o que ainda vemos sobressair na história e nas notícias é falta de ação política LGBT frente as tragédias que nos acometem por conta da opressão que sofremos, e nunca nossa resistência a esses ataques. Esse evento, fomentado pelo GALF, de 37 anos atrás revela uma história de mobilização das mulheres lésbicas pouco fomentada nos dias de hoje, a da reação popular auto-organizada e que deve ser disseminada para atingir os quatro cantos da população LGBT. Nossa luta não pode se contentar apenas com a “mendigagem” de direitos à candidatos políticos ou práticas que não visem uma superação da exploração que sofremos em postos de trabalho precarizados e no consumo da miséria política de uma cultura representacional. Nossa organização deve buscar ir além da estrutura e superestrutura social em que vivemos hoje.

Onde está a ação direta e os trabalhos sociais nos guetos lésbicos como o GALF fazia? A normativização de gênero e da sexualidade não pode nos esmagar; e para reagir temos que ser luta efetivamente. Ser resistência é construir, através dos movimentos sociais que estamos inseridas, uma revolta, a curto e medio prazo pelas pautas do nosso setor, e a longo prazo contra os produtores primários das relações de opressão. Com o destaque de que enquanto não houver pressão popular por parte dos LGBT’s, não haverá conquistas coletivas: conciliações e acordos são proponentes da sociedade dos dominados, que não favorecem o povo LGBT marginalizado. Um exemplo antigo dessa contradição é: como construir um projeto de lei que criminaliza a LGBTfobia, sendo que a está lei recairá sobre aqueles marginalizados pelo Estado? Pensar na organização política da comunidade LGBT é pensar nas lutas dos de baixo; não podemos ser tolerantes a nenhuma repressão e opressão que atinja as classes subalternas. Desde a proibição de um jornal, até o encarceramento em massa da população negra. Até quando confiaremos somente em aparelhos componentes da hierarquia estatal para nos colocarmosa contra a nossa dominação? Deixar a militância LGBT apenas nas mãos da burocracia é um recuo frente aos instrumentos que nos oprimem. As reformas são pontuais, mas a revolução é eterna.

Falar pouco sobre o que está por trás do Orgulho Lésbico e ter o ‘Stonewall’ brasileiro apagado da história é conveniente à classe dos dominadores, e para não deixar que essa história seja ocultada devemos realizá-la através da nossa participação política. Fazer política em primeira pessoa, organizadas no movimento social é um passo para incluir na luta nossas pautas e demandas como necessárias para o avanço da mobilização popular. Temos que ter consciência de que a luta é uma prática extra-eleitoral e cotidiana. Pois nossa libertação real depende de nossa libertação material. Por isso reiteramos: mulheres lésbicas e bissexuais construam luta cotidianamente, nós sabemos que os a opressão nos atinge até mesmo em situações corriqueiras, então para nos rebelarmos pautando os problemas que sofremos sejamos ativas no Grêmio/Movimento Estudantil, estejamos dispostas a atuar no Movimento Sindical, fomentemos movimentos contra-cultura, expulsemos os políticos falaciosos dos nossos bairros, desestruturemos o agronegócio e façamos oposição contra o colonialismo na acadêmia e fora dela; pois qualquer garantia de nossa sobrevivência é construída a partir de revoltas populares e se não estivermos envolvidas nesse processo, não haverá “representante” ou governo que faça jus ao nosso ‘Stonewall’.

Algumas referências sobre:

https://revistacult.uol.com.br/home/mulheres-lesbicas-feministas-brasil/

https://www.nossoamorexiste.com/2016/10/o-levante-ao-ferros-bar-a-historia-nao-contada-do-stonewall-brasileiro/

https://www.nossoamorexiste.com/2016/10/como-eram-tratados-os-homossexuais-na-ditadura/

https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/levante-ao-ferros-bar-o-stonewall-brasileiro.phtml

http://www.revistagenero.uff.br/index.php/revistagenero/article/view/187/125

https://observatoriog.bol.uol.com.br/noticias/cultura/2019/06/chanacomchana-conheca-a-historia-do-stonewall-brasileiro

http://acervobajuba.com.br/chanacomchana-edicao-4/

https://www.huffpostbrasil.com/entry/criminalizacao-homofobia-stf_br_5c6dc52ee4b0e2f4d8a2429e

http://www.umoutroolhar.com.br/2019/05/ha-40-anos-surgia-o-grupo-lesbico-feminista.html