Karim AInouz fez um filme recentemente chamado A vida invisível, cujo enredo é a amizade e posterior separação drástica de duas irmãs no Rio de Janeiro capital dos anos 40, descortinando a disparidade abissal de classe, com recorte de raça, no país daquela época, especialmente na capital, que é o lócus do filme.
A forma do filme tem de notável a montagem, que justapõe alternadamente as vidas de Guida e Eurídice – a primeira saiu de casa para casar com um marinheiro grego, volta meses depois grávida e só; a segunda casou meio por arranjo, engravidou, embora não quisesse, pois temia que atrapalhasse seu sonho: estudar piano no Conservatório de Viena. Guida passa a viver no início das favelas no Rio, tem trabalho precário e é mãe solteira; conheceu muitas mamas-áfrica, e passou a ver o mundo sob a lente do estigma de classe, do racismo e do machismo. Eurídice, cujo marido era funcionário público, alguma estabilidade, classe média. Através da montagem vemos as vicissitudes da vida colocadas lado a lado, as várias facetas, as coincidências, os desencontros cuja origem é a disparidade de classe estrutural no país desde o período colonial.
O período colonial é percebido no filme através de outra coisa notável: o uso da língua portuguesa de Portugal, não o português brasileiro. A família Gusmão é portuguesa de origem, pais trabalhadores – faziam pães. Os próprios nomes das protagonistas, Guida e Eurídice, que nos soam antigos (portugueses?), remetem então a um passado, através da língua, português. A língua e a história caminhando juntas.
Uma vez o meu pai comentou que achava, ou que alguém algures havia dito, que o cinema argentino tinha roteiros bem melhores que os brasileiros. Não melhor, mas diferente seria o mais correto, e sem o adjetivo “bem”. Um ponto que talvez se possa pensar para evidenciar essa possível diferença é: há filmes brasileiros com enredos como O cidadão ilustre, recente filme dos hermanos? (O filme é sobre um escritor argentino, que mora na Europa, e que volta a sua cidade natal, no interior, para receber uma homenagem, mas quando lá é acusado por, na sua literatura, falar mal da cidade, apontando atrasos econômicos, etc.) Outro longa exemplar para a comparação é A grande dama do cinema, que conta a história de quatro amigos, uma mulher e três homens, aposentados do mundo do cinema e vivem em um casarão que a especulação imobiliária quer tomar para si. É feita uma trama de cinema para matar o casal representante da imobiliária, tudo com muita ironia. Há longa assim no Brasil? Um caminho histórico para entender a diferença estética, que creio que há, talvez seja ver como os dois países foram colonizados e como as suas respectivas metrópoles enxergavam o processo de colonização. Um breve exemplo: há universidades e imprensa desde o século 16 na América espanhola, já na portuguesa só no século 19… Isto faz diferença certamente, resta ver se há relação com as formas em questão.
Isto tem a ver com A vida invisível, pois este tem por assunto central o relacionamento interpessoal das duas irmãs, cada qual com a sua individualidade. É um tema que escapa ao social, embora este esteja lá marcado, como sempre, o contexto histórico em que a obra, seja ela qual for, está inserida. É verdade que há filmes mais “subjetivos hoje em dia”, como Obra, Ausência, ou mesmo O som ao redor (coincidentemente todos com o ator Irandhir Santos), mas há algo em A vida invisível que dá a sensação do que poderíamos chamar de emancipação temática, a possibilidade de falar sobre um assunto pessoal, subjetivo, e que tenha sua força estética daí derivada (falamos, por exemplo, da montagem). É preciso estudar mais para procurar responder a essa pergunta, que creio interessante para a análise do cinema brasileiro contemporâneo.
(Outro texto maior sobre o filme pode ser lido aqui.)
Rodrigo Mendes