À Evelin Padilha Vigil, o grande amor da minha vida, ontem, hoje e sempre
Existem várias categorias para chamar os filmes – e outros objetos artísticos também – que fruímos, aproveitamos, curtimos. Tem uma categoria que é boa, mas é informal, e varia muito de pessoa a pessoa por ser uma categoria subjetiva: a dos filmes lindos. É claro que estou fazendo uma brincadeira aqui, pois estamos acostumados a ver como “categorias de filmes” o suspense, a comédia, o drama, e por aí vai – e estes também tem muito de subjetivo por trás de sua pretensa objetividade. Mas sigamos com a nomenclatura subjetiva lindo. O que é um filme lindo? Tenho certeza que muitos de nós já ouviram isso: “tal filme é lindo, lindíssimo”, ou variantes, como “que filme belo”, “é um filme muito bonito”, etc. etc.
Eu acho Túmulo dos vaga-lumes um filme lindíssimo em todo o horror que aborda e com a sensibilidade com que trata das questões relacionadas ao casal de irmãos japoneses no final da Segunda Guerra; também acho O sabor da vida, da Naomi Kawase, um filme muito bonito, novamente um filme japonês e novamente com trato sensível tocante; Morangos silvestres, do Bergman, também entra nesse rol, com a beleza da memória do protagonista. Numa linha mais filosófica, Asas do desejo, de Wim Wenders, é um filme lindo ao questionar a existência, o ser e o não ser, ao questionar o tempo vinculado à existência humana. Por outra razão Cinema paradiso é lindo, maravilhoso ao trazer a experiência cinematográfica e novamente o tempo, pois o protagonista cresce ao longo do filme e se depara com a lembrança de sua vivência passada. Tomboy é um filme bonito ao retratar a homossexualidade de uma criança de modo nada caricato, ao contrário, mostrando suas tensões; A melhor juventude, uma odisséia de 6 horas que atravessa a história recente da Itália é outra maravilha, filme lindo ao mostrar as vicissitudes da vida, os caminhos diversos, as paixões, as lutas…
Paro por aqui porque se não este texto será somente uma enumeração dos tais filmes lindos. Vou me concentrar a partir de agora – e sumariamente – no filme Antes de amanhecer, a lindeza de Richard Linklater (1995). Ali temos duas coisas centrais para o entendimento do filme e que se relacionam com os filmes acima citados: a experiência do amor e do tempo. Acima, de um jeito ou de outro, todos os filmes lidam com ao menos um destes temas, amor e/ou tempo, e os tratam de maneira bela, delicada, sensível, sem caricatura, sem forçação de barra, sem clichês – ou quando com clichês, estes se relacionam bem com o amor e com o tempo de modo a integrar à experiência de amor e de tempo. Digo experiência porque quero dizer que é algo que encontra eco na vida real, vida real aqui entendida como uma experiência de vida, uma vivência, algo que vira memória. Em suma: coisa de humano, de ser vivo, que para ser assim deve ser humano e manter relações humanas, ou seja, interpessoais, intergrupais, recusando assim, pois, as relações de internet, as relações robóticas e mecanizadas, etc.
O que é então o filme do Linklater? Há dois jovens num trem na Europa, ambos lendo, ela na frente e ele atrás do vagão – eles não se conhecem, mas já percebemos que tem algo em comum, o hábito de leitura. Por algo do acaso, algo tão particular e presente nas nossas vidas, ela troca de lugar e senta ao lado dele, mas na fileira do lado. Trocam algumas palavras e, também por razoes circunstanciais, ele, Jesse (Ethan Hawke), a convida (Celine, interpretada por Julie Delpy) para ir ao vagão de restaurante. Aqui começa uma breve história de amor, que dura mais ou menos 24h – tempo da narrativa, que começa agora e termina no outro dia, pela manhã, quando Jesse deve embarcar para os EUA (estão em Viena, Áustria). A cena que estamos comentando – a conversa no vagão do restaurante – é o ponto de partida de uma relação que vai ser muito profunda e intensa, porém breve. Jesse e Celine, americano e francesa, conversam como se se conhecessem desde crianças, falam de suas vidas, de seus gostos, brincam, enfim, uma conversa que todo mundo gostaria de ter e quem já teve sabe como é bom, de perceber a reciprocidade e a intimidade, as semelhanças com o outro, num processo incipiente de alteridade, com muitas trocas, enfim… (Acho que aqui vale um pequeno parêntese para dizer de onde eu vejo esse filme e a sociedade que está representada lá: eu sou uma pessoa que acredita no amor, porque vivo cada dia intensamente imerso nesse sentimento – no meu caso com minha companheira, a Evelin, mas nos filmes citados o amor se mostra de muitas formas e entre pessoas variadas. Acreditar no amor não é, em hipótese alguma, negar a banalização que há dessa palavra no mundo globalizado em que vivemos. A palavra “amor”, esse substantivo abstrato, assim como muitos outros é banalizado, as pessoas dizem que amam a todo instante, quando na verdade muitas dessas relações duram alguns meses, são inócuas, enfim. Dizer que o amor existe não excluí o fato, visto a olho nu, de que as relações interpessoais estão cada vez mais escasseando no mundo, devido à internet, a todos os processos tecnológicos e econômicos que nos afastam do ser humano, da experiência vivida e sentida.) Agora voltemos ao filme.
Quando Jesse precisa descer, faz uma proposta indecorosa, com o perdão da brincadeira, para Celine: a convida para passar o dia com ele, pois amanha ele viajará e eles possivelmente nunca mais se verão. Lembremos: é um homem estranho que convida uma mulher para passar um dia com ele, sozinhos, num país distante de suas casas. É um quadro que, para as pessoas minimamente atentas, remete ao machismo e possibilidade de violência de gênero. Não é isso que acontece. O filme vai contando as horas que eles passam juntos, cada vez imersos numa relação importante, intensa, verdadeira, na qual se jogam de cabeça como se não houvesse amanhã. Pode soar clichê, mas pensemos que tipo de experiência esse filme nos conta. É uma vivência muito real, muito viva que é retratada ali. Ao longo da narrativa descobrimos mais sobre duas vidas, sobre as desilusões amorosas que tiveram; assistimos a cena linda – e um tanto clichê – do primeiro beijo, no alto da roda-gigante, e do abraço em seguida ao beijo – isto é muito importante, um abraço depois do beijo demonstra afeto, não foi um simples caso, um beijo qualquer, percebe-se que ambos desejam um ao outro com algum sentimento, não só pulsão sexual ou algo do tipo.
O filme avança, passa pela noite, bares, caminhadas, conversas. O assunto fatídico vai se aproximando: e quando se separarem? Depois de algumas horas de relacionamento intenso (por favor não pensar em sexo, pois eles nem transam no filme) já não são meros estranhos, e sim companheiros. As conversas sinceras desencadeadas a partir disso, os olhares, as apreensões presentes nas cenas são prá lá de humanas e remetem a um tipo de experiência escassa numa sociedade cada vez mais objetificada. O filme se encerra com a partida de Jesse, e depois Celine também embarca no trem de volta para Londres – estamos em 1995, não existe internet, eles estão separados pelo oceano Atlântico e as cartas são motivo de piada entre o casal, que ironizam quem diz que vai escrever e nunca escreve. Tem ainda uma esperança, contudo: combinam de se encontrar naquele mesmo lugar 6 meses depois, uma promessa que, naquele momento, ambos endossam com o coração apertado pela separação.
Ultimo comentário para encerrar: essa marcação do lugar do encontro e da despedida é simbólica: a concretude do espaço geográfico é algo interessante porque fica bem registrado na memória como algo vivido ali, naquele lugar e não em outro. Também é notável o uso do tempo no filme, cuja narrativa transpassa mais ou menos 24 horas do dia dos amantes, dando tempo ao tempo, construindo uma relação, nada de coisas apressadas, forçadas, reificadas. Sabemos, é claro, que o Linklater (mesmo diretor de Escola de rock) é o mestre do tempo no cinema: Antes do amanhecer, título que também remete à idéia de tempo, perdida no caos da globalização, é o primeiro filme de uma trilogia gravado com os mesmos atores num intervalo de, salvo engano, 30 anos. Há ainda outros dois filmes, que ainda não vi, chamados Antes do entardecer e Antes da meia-noite, que devem ser tão belos e vivificantes como o primeiro. É também do Linklater a obra majestosa Boyhood, filme gravado em 12 anos, que acompanha seu protagonista desde a tenra idade a ida à faculdade, já adulto. Que filmes lindos…
Rodrigo Mendes