Como muitos estão sabendo, há uma imensa nuvem de gafanhotos que se originou no Paraguai, passou pela Argentina e agora se aproxima do Uruguai e do Brasil.
Quero fazer alguns apontamentos, em virtude das notícias que li sobre o assunto. Muitas dessas notícias têm deixado de lado as possíveis causas humanas (sociais) desse fenômeno. O mesmo se pode dizer das notícias sobre a atual pandemia, onde nosso modo de vida profundamente insustentável dificilmente é questionado.
Uma das notícias que li (numa página de divulgação científica) finaliza assim:
“Os especialistas ainda não conseguem explicar qual é o motivo dessa última nuvem. Entre as possibilidades que podem ter ajudado estão os altos níveis de temperatura, chuvas e ventos que auxiliam a reprodução.”
Notem que as consequências de ações humanas não são enfatizadas como possibilidades para explicar esse fenômeno. O trecho menciona os altos níveis de temperatura, mas não enfatiza que a temperatura mais alta é, em boa parte, consequência das mudanças climáticas; e que essas mudanças, por sua vez, estão relacionadas com o nosso modo de produção, distribuição, consumo e descarte.
Outra explicação que vem à tona – e que costuma ser deixada de lado pela mídia – relaciona a intensidade e os danos da nuvem de gafanhotos ao modelo agrícola dominante. O agronegócio transforma territórios biodiversos em grandes monoculturas regadas à agrotóxicos. Para a nuvem de gafanhotos, isso significa alimento abundante e ausência de predadores. Isso proporciona alta taxa de crescimento na população dos gafanhotos e a consequente necessidade dessa população avançar para outras regiões em busca de mais alimento.
Mas o agronegócio tem outra possível consequência que merece atenção, não só de especialistas e “autoridades”, mas da população em geral. Pelo menos desde a década de 1940, sabe-se que os organismos tendem a ficar mais resistentes aos agrotóxicos, um fenômeno esperado pela teoria da seleção natural. Isso indica que a enorme nuvem de gafanhotos (mas também outras “pragas”) provavelmente está ficando mais resistente. Sem mudanças substanciais nesse modelo agrícola, é esperado cada vez mais “pragas” e cada vez mais agrotóxicos para evitá-las. Quem sabe a praga não é o agronegócio, em vez dos insetos que tiveram seus habitats destruídos?
Há outras formas de praticar agricultura, mas elas não convêm aos interesses dominantes. É por isso que a agroecologia continua marginal nas instituições de pesquisa e nos projetos de governo. Entre produzir alimentos saudáveis e nutritivos com conservação ambiental e justiça social e produzir ‘commodities’ que destroem e contaminam ambientes, mas servem à acumulação de riqueza e poder, as elites (colonizadas) preferem a segunda opção. Como a pauta dos governos tem sido principalmente a pauta das elites, a política institucional prioriza a segunda opção.
Agora quero acrescentar outro ponto. Um ceticismo racional nos impele a reconhecer que não há uma teoria bem estabelecida para explicar a atual nuvem de gafanhotos. No entanto, isso não torna arbitrárias as decisões sobre como devemos agir. É nesses casos (de teorias não estabelecidas) que o chamado “princípio de precaução” possui um papel central. Devemos agir com base em nossas melhores teorias e no princípio de precaução. Isso deveria levar a uma reconsideração do modo como interagimos com a natureza e praticamos agricultura. Essa é uma conclusão crucial e precisamos levá-la a sério. Mas, para isso, a política precisa deixar de ser pautada pelas elites. Precisamos de ciência e técnica para resolver esses problemas, mas só teremos soluções satisfatórias com enfrentamento político e consequentes mudanças nos rumos das sociedades.
Alguns poderiam notar que essa conclusão se mantém ainda que não houvesse a tal nuvem de gafanhotos. Mas isso não é uma falha da teoria (segundo a qual o nosso modelo de sociedade é o principal responsável pelos problemas socioambientais). De fato, a nuvem não é capaz de confirmar nem refutar essa teoria. Mas o princípio de precaução nos compele a lavá-la a sério. Caso a teoria esteja correta, será um erro inadmissível não a termos considerado.
Não estou negando que esse fenômeno dos gafanhotos tenha uma base natural (ecológica e evolutiva). Diferentemente, estou criticando a concepção que assume que esse fenômeno ocorreria na mesma intensidade e com os mesmos danos caso a nossa interação com a natureza fosse diferente. E não estou fazendo uma crítica apenas epistêmica a essa concepção, mas também uma crítica ética. Meu ponto é que as dimensões epistêmicas e éticas estão entrelaçadas em assuntos como esse, e precisam ser vistas como tal.
O texto é de Claudio Reis, biólogo graduado pela UFRGS e professor adjunto na Universidade Federal da Bahia.