Grupo de extrema-direita arrecada mais de R$ 60.000,00 em vaquinha online para financiar guerra “não-violenta” em defesa do presidente

Ao mesmo tempo em que promove diversas campanhas solidárias de auxílio financeiro a pessoas e comunidades no contexto do novo coronavírus, a plataforma de financiamento coletivo “Vakinha” abriga campanha de arrecadação para financiar grupo de extrema-direita. O “Acampamento dos 300” ocorre em Brasília, no gramado em frente ao Palácio do Planalto e seus participantes foram exaltados por deputados da base do governo, como a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), que no domingo (3/5) fez um tweet em defesa do acampamento, seguido de uma fotografia das barracas. Os filhos do presidente também contribuem para pautar o movimento nas redes sociais.

Nesta primeira semana de maio a pandemia de Covid-19 chega a números assustadores, contabilizando mais de cento e dez mil infectados e quase 8 mil mortos. Só ontem, atingimos a taxa de óbitos recorde, mais de 600 mortos por coronavírus A principal agitadora do movimento é a militante de extrema-direita Sara Winter, que afirma ter organizado o movimento a pedido do ideólogo conservador Olavo de Carvalho. Enquanto diversas organizações, movimentos sociais e grupos da sociedade civil se mobilizam em iniciativas solidárias, os “300 do Brasil” juntam dezenas de milhares de reais para ameaçar os poderes legislativo e judiciário com subversão política e desobediência civil em defesa do presidente.

Até as 23h de segunda-feira (4 de maio), o grupo havia arrecadado R$ 41.000,00. Hoje (6 de maio) às 11h o valor já ultrapassa os R$ 60.000.

A plataforma Vakinha abriga a campanha de financiamento do Acampamento “Os 300 do Brasil”. Mas qual é o problema?

Logo no início de sua apresentação na plataforma Vakinha, o grupo se apresenta assim: “Nós somos os 300 do Brasil. O maior acampamento de ações estratégicas contra a corrupção e a esquerda do mundo”. Mais abaixo, expõe o que se pretende fazer: “Um acampamento de base com um dia inteiro de treinamento com especialistas em revolução não violenta, táticas de guerra de informação, palestras sobre a atual situação política, econômica e social do Brasil”.

Embora não cite o nome de Bolsonaro, a iniciativa vem de sua base de apoio e está claramente alinhada ao discurso do presidente,. No vídeo de apresentação da iniciativa, que é embalado por uma trilha sonora gloriosa, vemos militantes de extrema-direita falando de forma exaltada em defesa do presidente, dando a entender que o Brasil está sendo vendido para a China, e com falas como “Judiciário julga, Legislativo legisla, Executivo governa. Deixa o presidente governar!”. Ao final do vídeo, os militantes afirmam “Nós somos a democracia, nós somos os 300 do Brasil”, e então há o corte para uma cena de execução do filme “300”, o que não é nada menos do que uma ameaça velada a quem se opor aos interesses do grupo.

Entre outras coisas, o texto informativo da vaquinha diz que o acampamento só termina “quando o [Rodrigo] Maia cair”, e que estão buscando “pessoas que tenham a coragem de doar ao Brasil sangue, suor e sono”, que se disponham a “dedicar-se integralmente às ações coordenadas, inclusive tendo em mente a possibilidade de ser detido”,  e que estarão contando com corpo jurídico gratuito.

Na parte do detalhamento dos gastos, é dito que o dinheiro arrecadado será usado para o aluguel de uma “propriedade particular para acolher e treinar os ativistas”, além de outros gastos com materiais para protesto. Ao final do texto, vemos uma saudação do exército brasileiro, em negrito e em caixa alta (“SELVA!”). A página Vakinha, em suas letras miúdas, contém um aviso legal de que o texto e as imagens da página são de responsabilidade exclusiva do criador da vaquinha, mas isso não a exime da responsabilidade de estar hospedando em sua plataforma, conhecida por abrigar tantas campanhas solidárias, a campanha de algo que pode vir a se tornar um grupo de treinamento paramilitar com intenções violentas e antidemocráticas, como será abordado adiante.

Quem está por trás do Acampamento dos 300: Sara Winter, a “ex-feminista conservadora”

Agora vamos ao que não é dito no site Vakinha. O Acampamento dos 300 é promovido por Sara Winter, uma fervorosa apoiadora do presidente Jair Bolsonaro, tendo se candidatado a deputada federal em 2018 pelo partido Democratas do Rio de Janeiro, não conseguindo eleger-se. É armamentista e ultraconservadora.

O nome Sara Winter é quase idêntico ao da socialite britânica Sarah Winter, membro da União Britânica de Fascistas e apoiadora do Partido Nacional-Socialista Alemão. Sara nega que a coincidência entre o seu nome e o da nazifascista britânica tenha sido proposital, mas tinha uma Cruz de Ferro nazista tatuada no corpo, e já elogiou o integralista Plínio Salgado, fundador e líder da versão verde-amarela do fascismo. Ela tapou sua tatuagem com outro desenho por cima.

Ao regressar de viagem à Ucrânia em 2012, onde se vinculou ao movimento ucraniano Femen, que dizia luta por igualdade de gênero, fundou o Femen Brasil, mas já em 2013 foi destituída do movimento por uma das fundadoras. Militantes do grupo Femen, como expõe Cleber Lourenço em sua coluna na Revista Fórum, revelaram sua faceta nazifascista na Ucrânia dos protestos do Euromaidan em 2013-2014.

Há registro de Sara protestando em 2013 ao lado da atual deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), em que esta aparece utilizando uma camiseta do grupo. A ex-número dois do grupo no Brasil, Bruna Thelmis, acusou Sara de ser autoritária e simpática ao nazismo.

A partir de 2015, a ativista começou a se promover como “ex-feminista”, voltando-se contra as lutas que dizia defender, como o direito ao aborto e a igualdade gênero. Começou então a produzir conteúdo ligado à direita, sendo influente no movimento conservador Pró-vida (contra o aborto) e uma radical opositora dos direitos LGBTI+. Afirmando ter sido “salva” do feminismo por ninguém menos que Damares Alves, foi convidada para ocupar cargo na Secretaria da Mulher, ligada à pasta da ministra. Mas Damares se arrependeu de sua decisão ao ver a forma como Sara atacou a antiga aliada Zambelli às vésperas de sua nomeação em vídeo nas redes sociais. A ex-feminista acusou a atual deputada de ter feito um aborto. A briga rendeu até processo judicial. Damares começou a temer que a militante pudesse envolver o presidente ou a própria ministra em suas confusões.

“Chegou a hora de ucranizar o Brasil!” – mas o que é “ucranizar”?

No dia 20 de abril, Sara postou um tweet dizendo “Fui treinada na Ucrânia e digo: chegou a hora de ucranizar!”, mas um tempo depois apagou o tweet de seu perfil, o que não impede que tenha sido feito o registro, como mostramos abaixo:

Mas o que significa “ucranizar” o Brasil? Que tipo de treinamento Sara Winter recebeu na Ucrânia e como ela pretende replicá-lo por aqui? O termo tem sido utilizado por muitos perfis de extrema-direita nas redes sociais. Muitos usuários colocam a bandeira ucraniana ao lado da bandeira brasileira em seus apelidos no Twitter para sinalizar o seu desejo de “ucranização”. Para responder a esta pergunta, devemos fazer uma breve incursão na conturbada história recente da Ucrânia.

Em novembro de 2013 se deu no país a insurreição nacionalista que ficou conhecida como “Primavera Ucraniana” ou “Euromaidan”, que ocorreu na praça Maidan, em Kiev, capital do país. Os manifestantes pressionavam para que o presidente Viktor Yanukytch, alinhado econômica e politicamente à Rússia, cumprisse uma série de requisitos para aderir à União Europeia. No dia 21 de novembro de 2013 o presidente decidiu adiar as negociações para a integração ao bloco europeu, através de um decreto que suspendia os preparativos para a assinatura do acordo de associação. Isso levou a uma onda de protestos violentos que foi duramente reprimida pelas forças policiais ucranianas, com vários mortos, feridos e presos. O número de pessoas na praça Maidan só crescia, com forte comoção em favor dos manifestantes.

O conflito se prolongou por três longos meses. A opinião pública ficou dividida, com praticamente metade da população apoiando as reivindicações do Euromaidan e a outra metade se opondo (o leste da Ucrânia tem regiões majoritariamente russófonas, e há grande contingente populacional leal à Rússia). A polarização política levou os maidanistas a investir num discurso cada vez mais nacionalista e numa retórica conspiracionista de “nós versus o establishment corrupto”, associando-se tal establishment à corrupção política, à degeneração cultural do povo eslavo e à esquerda, ao comunismo, estratégia narrativa que conhecemos bem por aqui.

A escalada do conflito levou o país a uma guerra civil, que se arrasta desde 2014, entre as forças ultranacionalistas ligadas aos eventos do Euromaidan  e forças separatistas do leste que querem se anexar à Rússia.

O maior expurgo nacionalista se deu na cidade de Odessa. Lá, onde há considerável número de russófonos, houve diversos conflitos violentos nas ruas entre maidanistas e anti-maidanistas ao longo do começo de 2014, chegando ao estopim no dia 2 de maio de 2014, quando uma série de confrontos levou a um massacre, vitimando 48 pessoas no total. Os anti-maidanistas, para se protegerem das agressões dos nacionalistas, se refugiaram na Casa dos Sindicatos de Odessa, que foi incendiada com coqueteis molotov pelas milícias de extrema-direita. Com o incêndio morreram 32 pessoas sufocadas e outras 10 que se atiraram das janelas do prédio em chamas. Foi o maior conflito civil do país desde 1918.

Eis a “ucranização”. A ideia é fazer com que “Os 300 do Brasil” se identifiquem com os nacionalistas do Euromaidan, e identifiquem todo o resto ao inimigo, nos mesmos termos: comunistas, corruptos – em suma, devem ser extinguidos. E a guerra civil, ou a “guerra não violenta” ou a “contrarrevolução” é o desfecho que limpará a nação desses degenerados.

E o treinamento que Sara Winter propõe? No começo do conflito na praça Maidan, os maidanistas, para se defender da polícia, receberam formação em batalha de rua com grupos ultranacionalistas ucranianos, que compartilhavam táticas e material para resistir à ação da polícia ucraniana. Nessas batalhas também recrutaram muitos quadros para suas fileiras e conquistaram o apreço de grande parte da opinião pública pró-Maidan, sendo vistos como heróis, patriotas, etc.

Vamos citar o exemplo do Batalhão Azov, milícia de extrema-direita mais conhecida, que atuou na escalada militar do conflito. Em abril de 2014 a milícia teve sua atuação autorizada por meio de um decreto que legitimava o uso de forças paramilitares voluntárias, e em novembro de 2014 foi incorporada às forças militares oficiais da Ucrânia.

A organização, que se utiliza oficialmente de muitos símbolos em comum com grupos neonazistas, como o “Sol Negro”, as runas celtas, também compartilham de elementos ideológicos e tem laços conhecidos com diversas células neonazistas internacionais, promoveu uma série de campos de treinamento militar e ideológico, inclusive com “acampamentos de verão” militarizados para crianças. E na guerra civil recebeu em suas fileiras diversos voluntários de organizações de extrema-direita para que pudessem ter formação e experiência em conflitos militares, para assim formarem seus quadros em seus países de origem, inclusive recebendo neonazistas brasileiros.

Não sabemos qual foi exatamente o treinamento a que Sara Winter se refere, quando diz que recebeu treinamento na Ucrânia, mas seria válido perguntar se Sara teria ligação com algum desses grupos, e se o seu treinamento teria tido lugar em algum desses campos.

Mas o que isso tem a ver com o Acampamento dos 300?

Treinamento militarizado e a promessa de “exterminar a corrupção e a esquerda” – o que não é mostrado na Vakinha

    Por mais que os vídeos cobrindo as atividades do acampamento evidenciem uma grande diferença entre a fantasia gloriosa dos patriotas espartanos e a realidade dos trinta bananões de meia-idade com camisa da CBF, não deixa de haver motivos para se preocupar. O fato é que já foram arrecadados mais de R$ 60.000,00, e é prevista a organização de um acampamento em terreno desconhecido, para o tal treinamento, posteriormente, seguindo protocolos de segurança estritos, para evitar infiltrados. O fato é que a intenção é radicalizar ainda mais a base de apoio bolsonarista, escalando a agressão à esquerda e aos outros poderes, do virtual para as ruas.

Sara Winter, em seu canal do Youtube, tem postado vídeos convocando mais pessoas a irem fazer parte desta “contrarrevolução” relatando a situação do acampamento, mostra imagens do grupo de pessoas, e fala que estão ali se preparando

O acampamento tem um canal no aplicativo de mensagens Telegram, e ali repassam materiais com informações, orientações e propaganda do grupo. A descrição do canal é “Grupo destinado à organização primária do maior acampamento contra a esquerda do mundo”, colocando uma meta de 5 mil inscritos já no primeiro dia da criação do canal, mas não conseguiu alcançar a meta. Os administradores também pedem que os membros divulguem o canal, para “difundir ao máximo a ideia da contra revolução contra a corrupção e a esquerda”.

É explorada a ideia de que o Brasil precisa destes poucos heróis, 300 patriotas dispostos a tudo contra a multidão esquerdista corrupta e degenerada, que tomou conta do Brasil. É preciso, segundo eles, fazer uma contrarrevolução para restabelecer a ordem e resgatar o país das mãos do inimigo. Um outro elemento é a ideia belicista, de que aquele que ingressa no grupo dos 300 “NÃO É MAIS UM MILITANTE, (…) É UM MILITAR, um militar com uma farda verde e amarela, pronto para dar a vida pela sua nação”. Guerra, sacrifício, pátria. Mobiliza-se o imaginário protofascista.

Só que é uma guerra “não violenta”. Uma ressalva: não é porque eles queiram que não seja violenta, como vemos na imagem abaixo. Em outro lugar no canal, fala-se de forma bem clara que o acampamento “é uma ação organizada do povo e da sociedade civil para botar FIM e exterminar a corrupção e a esquerda em nosso país através de ataques estratégicos baseados em ativismo e inteligência”.


Mapeando a rede bolsonarista na internet, vemos muitos indivíduos sinalizando o desejo de ingressar neste movimento, desde jovens gamers entusiastas da guerra a cristãos dispostos ao sacrifício para salvar o presidente “messias”, passando por todo tipo de perfil que vemos ao percorrer a rede de esgoto bolsonarista. Muitos desses falam em “ucranizar”, como já explicitei acima, e falam também que se o Congresso Nacional e o STF abrirem processo de impeachment contra Bolsonaro, haverá guerra civil, acreditando que entrarão para a história como patriotas que se sacrificaram por seu presidente. Pode ser que a aventura não resulte em grande ameaça. Mas também pode acontecer de as hostes bolsonaristas cumprirem a promessa de “ucranizar” mais adiante, sendo a base civil necessária para uma tentativa de autogolpe de Bolsonaro. Estejamos alertas.

  

A ameaça de violência física contra os opositores do governo não poderia ser mais literal. Por isso reiteramos que é preciso exercer pressão por parte da sociedade civil para dificultar que esse dinheiro chegue no seu destino. É preciso pressionar o site Vakinha para que tire do ar a campanha do Acampamento dos 300, devolvendo o dinheiro aos colaboradores. A plataforma deve se retratar publicamente pela demora em tomar alguma atitude, e se comprometer em desenvolver meios mais eficazes de comunicação e apuração das iniciativas que abriga, para que consiga identificar de forma mais eficaz este tipo de situação. Um site que promove e auxilia tantas causas justas e solidárias não pode servir para financiar grupelhos violentos movidos pelo ódio.

Fontes:

https://threader.app/thread/1257104595379200000

https://www.youtube.com/watch?v=hmZlYy_uQK8&feature=emb_rel_end

https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/damares-ja-se-arrependeu-de-ter-nomeado-ex-feminista-no-seu-ministerio/

https://www.diariodocentrodomundo.com.br/deputada-carla-zambelli-processa-sara-winter-assistente-de-damares-por-ser-acusada-de-aborto

https://www.youtube.com/watch?v=QN7etnX8ksk&t=5s

https://www.vakinha.com.br/vaquinha/os-300-do-brasil

https://medium.com/@igorrafi_63730/alerta-radicais-bolsonaristas-preparam-guerrilha-para-exterminar-esquerda-em-bras%C3%ADlia-25def9465697

https://revistaforum.com.br/politica/organizadores-de-ato-golpista-dizem-que-agressoes-sao-so-o-comeco-e-prometem-exterminio-da-esquerda/amp/

https://revistaforum.com.br/politica/com-barracas-todas-iguais-bolsonaristas-montam-acampamento-em-frente-ao-congresso/amp/

https://www.brasil247.com/brasil/quem-me-pediu-pra-fazer-tudo-isso-foi-o-professor-olavo-diz-sara-winter-que-coordena-acampamento-pro-bolsonaro

https://www.vakinha.com.br/vaquinha/os-300-do-brasil

https://en.wikipedia.org/wiki/2014_Odessa_clashes#Trade_Unions_House_fire

https://br.sputniknews.com/noticias/201612127144053-fascistas-ucranianos-recrutamento-neonazistas-brasil-leste-europeu/

https://www.reuters.com/article/us-cohen-ukraine-commentary-idUSKBN1GV2TY

https://en.wikipedia.org/wiki/Azov_Battalion#History

https://www.vice.com/pt_br/article/vb95ma/a-extrema-direita-esta-usando-a-guerra-na-ucrania-como-base-de-treinamento

https://revistaforum.com.br/blogs/ocolunista/o-que-a-sara-winter-quer-quando-diz-vamos-ucranizar/

https://f5.folha.uol.com.br/humanos/1138203-lider-feminista-tem-simbolo-nazista-tatuado-e-diz-ter-sido-prostituta.shtml

https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/24385/femen-brazil-nao-tem-propostas-feministas-acusa-ex-numero-2-do-grupo

https://t.me/os300dobrasil