No momento em que as sociedades, mundo afora, buscam formas de enfrentar a pandemia do novo coronavírus (COVID-19), vemos governantes e meios de comunicação atuando para que investimentos emergenciais sejam feitos nos sistemas públicos de saúde como principal forma de contenção e enfrentamento da alastrante epidemia.
O medo do impacto que a pandemia pode ter sobre a vida das pessoas no Brasil, especialmente das classes médias e da elite, está relacionado à compreensão de que o sistema privado, acessado rotineiramente por essas camadas da sociedade, será absolutamente incapaz de dar respostas às necessidades de saúde da população com a passagem do COVID-19 pelo Brasil. O SUS, nesse momento, se torna a principal agenda entre políticos, movimentos sociais, empresários, governantes e meios de comunicação de massa. É preciso perceber, porém, que diferentes formas de entender o que é a saúde, para que e para quem serve o Sistema Único de Saúde (SUS), como organizar e financiar as ações em saúde, disputam a configuração e organização do SUS desde sua criação.
As respostas que o SUS pode dar hoje, frente à pandemia do COVID-19, foram construídas ao longo do tempo e o sistema de saúde que temos hoje é o resultado de como a sociedade brasileira se responsabilizou e se organizou para a proteção da saúde de sua população ao longo da história. Essa história é composta por diferentes formas de entender a sociedade e a saúde. Os diferentes entendimentos disputam os modos de organização do sistema de saúde (de onde virão os recursos financeiros, em que setores eles serão investidos, qual o formato da assistência, da gestão, da vigilância em saúde, etc) dentro dos espaços políticos e sociais.
Entender a saúde e a doença como problemas apenas dos indivíduos ou das famílias coloca no indivíduo a culpa pela sua doença tanto quanto o mérito pela sua saúde, reduzindo a potência da proteção da saúde dos coletivos, pois nega que construímos social, política e historicamente as condições de saúde sob as quais as pessoas vivem. Por outro lado, assumir que a saúde é condicionada pelos arranjos sociais em que vivemos (acesso à água, ao saneamento, à alimentação, ao transporte, à cultura, à educação, ao lazer, ao trabalho, à renda, à terra, à aposentadoria, etc) coloca a população e a vida em coletivo como base da organização do sistema de saúde, ampliando consequentemente a proteção que ele consegue oferecer aos indivíduos.
Na medida em que um pior anunciado se aproxima e que as saídas individuais parecem ser insuficientes, surgem um sem número de defensoras e defensores de maiores investimentos no SUS como ampliação de atendimentos, criação de estruturas de UTI e compra de respiradores. Isso acontece porque, com a chegada da pandemia, fica cada vez mais fácil perceber que as necessidades de saúde que temos agora como população (a ampliação dos serviços de saúde, a produção de conhecimento e o planejamento das formas de enfrentamento à pandemia) não serão supridas por Unimed, Amil, Bradesco, SulAmérica, Golden Cross, ou qualquer outro plano de saúde privado, pois eles fazem saúde a partir da noção individualista (ou biomédica), que olha apenas para o corpo biológico das pessoas, ignorando que esses corpos vivem em culturas e territórios com dinâmicas e condições socioculturais particulares. Esse pensamento fica óbvio quando as orientações de isolamento social e quarentena chegam às periferias, onde são, para a maior parte das pessoas que vivem nessas comunidades, impraticáveis, pois pouco dialogam com o modo de organização socioespacial e econômico-cultural desses territórios.
A saúde de todas e todos brasileiros depende hoje, mais do que nunca, de um surrado e precarizado Sistema Único de Saúde. Surrado pelos grande veículos de comunicação que sempre optaram por mostrar as precariedades e os insucessos do SUS (que realmente existem e são muitos) aos feitos e conquistas do mesmo (que também existem em grande quantidade). Assim, ao SUS foi relegado o lugar de serviços de baixa qualidade, para os pobres, que mata pessoas na fila do hospital (novamente tudo verdade). Pouco é falado porém dos seus sucessos, como a ampliação da atenção básica pela Estratégia de Saúde da Família, que levou acesso aos serviços básicos de saúde a milhões de pessoas, diminuindo as filas dos hospitais e formando, ao longo dos anos, o que hoje chamamos de “linha de frente” do enfrentamento ao COVID-19, com milhares de trabalhadores atuando nos mais diferentes territórios, cobrindo mais de 60% da população do país.
Já a precarização do SUS é revelada pelo subfinanciamento crônico que, entre outros fatores, tem uma dívida ativa de 1,7 bilhões de reais do setor privado (planos de saúde) não pagos ao SUS, agravados pela isenção fiscal permitida aos cidadãos que aderem a planos de saúde (o que gera uma transferência maciça de recursos que poderiam ser usados no sistema público para o sistema privado de planos e seguros de saúde), pela desvinculação de receitas da União (que permite o uso de recursos sociais para pagamento da dívida externa) e mais recentemente pela Emenda Constitucional 95 de 2016, que limita os investimentos do Estado em políticas sociais, como o SUS, por 20 anos.
Então lutar pelo SUS é lutar pelo seu reconhecimento e financiamento adequado? Sim, mas não só. Porque sem reconhecimento dos avanços nas políticas de saúde elas se tornam frágeis e são facilmente desmontadas, como aconteceu recentemente com os Núcleos de Apoio a Saúde da Família (NASF), política que estabeleceu equipes multiprofissionais para dar apoio aos trabalhadores das Equipes de Saúde da Família. Essas equipes (muitas das quais já foram desfeitas pelos municípios após a perda do incentivo federal) engrossam e qualificam a nossa “linha de frente” no enfrentamento ao COVID-19.
A luta pelo SUS não pode ser apenas por financiamento e reconhecimento, pois o SUS não é apenas um sistema de atendimentos, consultas e internações, ele é um projeto de sociedade, que afirma no 3º artigo de seu manifesto fundante, a lei 8080 de 1990, que “os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do país” e que “(…) a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais” determinam e condicionam a saúde das pessoas, cabendo ao Estado garantir tais condições, como diz o 2º artigo da mesma lei: “A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”
Além do dever do Estado de garantir o direito à saúde e do conceito ampliado de saúde, temos quatro princípios doutrinários que mostram a direção do projeto de sociedade colocado pelo SUS. A universalidade diz que todas as pessoas têm direito ao acesso à saúde, ou seja que todas as pessoas que estão no território brasileiro tenham acesso às condições de vida adequada e aos serviços de saúde quando necessário. A integralidade afirma que para termos saúde devemos ter acesso ao que precisamos (procedimentos e serviços de saúde, alimentação, informação, isolamento social, etc) no momento que precisamos deles. E a equidade nos coloca frente à noção de justiça social, pois precisamos tratar diferentemente os diferentes, ou seja, que aqueles que mais precisam (os mais pobres) terão prioridade no uso dos recursos disponíveis. O quarto princípio, a participação popular, é a abertura do sistema aos seus usuários e cidadãos para que eles possam participar das decisões, junto aos outros atores do SUS, sobre quais direções serão tomadas nas políticas de saúde.
Assim, defender o SUS não pode ser apenas a defesa do aumento dos leitos e trabalhadores da saúde no enfrentamento da pandemia de coronavírus, apesar disso ser fundamental. Também não é apenas a luta pelo financiamento adequado do sistema de saúde (não só em tempos de pandemia), mesmo sendo isso imprescindível. Mas deve iniciar pela compreensão de que a saúde é a capacidade que temos de enfrentar as mazelas da vida, e essa capacidade está diretamente relacionada com a forma como distribuímos os recursos como “a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais” (lei 8080, art. 3º, 1990). O projeto de sociedade que defendemos ao defender o SUS deve apontar para uma distribuição mais justa e para a melhoria dos condicionantes de saúde para todos (caráter universal), promovendo justiça social e priorizando as pessoas com maiores necessidades de saúde (equidade), de forma séria e com os recursos necessários que garantam a qualidade das práticas em saúde (integralidade). É um projeto que ainda está em construção e em disputa e deve ter em sua base a participação da sociedade na tomada de decisões, no controle e fiscalização das ações (participação popular e controle social).
A luta pelo SUS é, assim, antes de tudo uma luta por uma sociedade menos desigual, com menor concentração de renda e de recursos, é uma luta pelos direitos humanos e pelo saneamento adequado, é uma luta pela moradia digna e pelo direito à terra, assim como é pelo direito a trabalhar com segurança, podendo se afastar quando necessário. É também luta pela renda mínima básica e pela aposentadoria. Lutar pelo SUS é, hoje, lutar por mais trabalhadores e por mais leitos para enfrentarmos o COVID-19, mas é também seguir lutando por melhores e mais justas condições de vida e saúde para a população brasileira, para que quando a próxima pandemia chegar (e ela chegará) tanto nosso sistema de saúde como nossa sociedade, tenham a força necessária para não colapsar frente ao desafio.
Luis Carlos Nunes Vieira de Vieira é mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, atuou no SUS em serviços de atenção básica, atenção psicossocial e na formação de Agentes Comunitários de Saúde, atualmente cursa doutorado no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva na UFSC.