Por Ana Lara e JG, militantes da Resistência Popular Estudantil – Floripa
O ano de 2019 deixou marcas da instabilidade política na América Latina que seguem muito vivas até agora. Por um lado, estamos presenciando o fim de uma geração de governos ditos populares, mas que buscaram sempre algum nível de conciliação com elites locais e mantiveram, também em menor ou maior grau, nossa dependência colonialista de exploração da natureza e exportação de bens primários submetidas aos países centrais capitalistas.
São governos cujo fim – ou derrubada a força – deu lugar a uma direita e extrema-direita que reforçaram as políticas neoliberais de exploração de nossos recursos naturais e força de trabalho, política que vem junto com o aumento da repressão estatal e a aliança com ideologias conservadoras de face patriarcal, racista, colonial e/ou fundamentalista religiosa.
É em meio a esse cenário que presenciamos os levantes populares ou grandes mobilizações de 2019 no Equador, Peru, Haiti, Chile e Colômbia, que encheram as ruas contra os efeitos do neoliberalismo e seus governos, conquistando algumas vitórias contra medidas privatistas e contra o aumento do custo de vida – no Chile, em particular, as mobilizações continuam com força e fazem tremer o governo de Piñera. Vimos também em 2019 o retorno da centro-esquerda nas eleições da Argentina e, anteriormente, a vitória de López Obrador no México.
Nós, após três anos do golpe midiático-jurídico-parlamentar brasileiro, imersas na difícil conjuntura de um avanço da extrema-direita em nosso país e incapacidade dos movimentos populares em oferecer uma resposta à altura, fomos à Bolívia com interesse pela história e destino comuns de nossa latinoamérica. Entre 13 e 27 de janeiro de 2020, percorremos oito cidades bolivianas atentas aos muros, aos noticiários e aos locais que foram epicentro das lutas sociais e políticas do país, buscando entender como se moviam as peças da sociedade boliviana após o golpe de novembro de 2019 que derrubou Evo Morales. Mesmo que o reconhecimento latinoamericano e afroindígena ainda seja pequeno em nossa compreensão de Brasil, acreditamos com convicção que não existe caminho nacional que não se encontre, por fim, ligado à estrada de nosso subcontinente.
Os acontecimentos desde as eleições de outubro
As eleições bolivianas de 2019 aconteceram em 20 de outubro, colocando Evo à frente nos resultados, mas sob suspeitas de fraude. No dia 10 de novembro, após uma jornada de protestos, Evo renuncia e sai exilado do país. Desde então, esses episódios estão sob uma forte disputa de narrativas.
Aqueles que assumiram o governo relatam um levante cívico espontâneo e popular, motivado pela indignação com a corrupção e a fraude eleitoral, que conseguiu derrubar um governo ditatorial. Uma narrativa que deixa de lado as orquestradas ameaças e sequestros a altos quadros de órgãos do Estado e do MAS, partido de Evo, levadas a cabo por grupos armados, bem como a sucessão de censura e perseguição política desatada pós-renúncia; as nítidas influências diplomáticas e operativas de governos de direita e extrema-direita, como os EUA e o Brasil, por trás dos acontecimentos; e o ódio anti-indígena mobilizado por elites conservadores e fundamentalistas religiosas, em um contexto de avanço evangélico no país, sintetizados nos gestos de retirar a bandeira wiphala de símbolos oficiais e na frase da atual presidenta Jeanine de que “a Bíblia estava de volta ao palácio”.
Os setores vinculados ao MAS, por sua vez, relatam um golpe de Estado articulado apenas pelas elites brancas e os EUA, sob seus interesses de classe e geopolíticos, sem levar em conta a insatisfação popular com diversas medidas do governo de Evo, como o avanço de mega-obras em terras indígenas, a responsabilidade pelos enormes incêndios de 2019 na Amazônia boliviana e, principalmente, a escolha política de tentar manter-se no cargo em uma nova reeleição, que havia sido rechaçada em plebiscito popular em fevereiro de 2016. Assim, não foram apenas as elites que estiveram nas ruas pela sua renúncia, fato melhor sintetizado pelo pronunciamento da Central Operária da Bolívia (COB), principal central sindical do país – cujo histórico de lutas classistas é inegável – pedindo a Evo por sua renúncia antes das Forças Armadas fazerem o mesmo.
Evo e Linera buscam exílio no México após a renúncia. Em primeiro momento há grande instabilidade política, sem que um novo governo se formasse, enquanto as elites anti-indígenas buscavam tomar o poder em ofensiva. Setores populares radicalizados ameaçavam uma resistência armada – no dia 11 de novembro, a organização aymara Ponchos Rojos marchou a La Paz sob cantos de “agora sim, guerra civil!”. A situação chegou a um equilíbrio tenso entre golpistas e movimentos sociais com a posse da então vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez, que assumiu o compromisso de que seriam convocadas novas eleições em breve e que haveria garantias mínimas de organização, com participação do MAS e dos movimentos populares.
As eleições gerais foram posteriormente marcadas para o dia 03 de maio, mas o governo em exercício é responsável pela militarização das ruas do país; por diversos episódios de perseguição judicial e política a políticos do MAS, movimentos sociais e mídias populares; bem como pode ser responsabilizado por fazer vista grossa à organização de grupos armados de extrema-direita que circulam nas ruas em algumas cidades e continuaram com ameaças e perseguição a personagens do governo anterior – como o ex-ministro Carlos Romero, que teve sua casa cercada por grupos de extrema-direita até sua internação hospitalar e posterior prisão em janeiro.
Um país rachado
Primeiramente, é preciso compreender que o rosto da Bolívia é indígena, assim como seus traços e seus sons. Diferente do Brasil, onde o genocídio promovido pelo colonizador nos faz hoje ter menos de 1% da população indígena, grande parte da população boliviana se considera indígena-originário ou mestiza (compreensão étnica usada na Bolívia, onde há uma conformação histórica diferente do contexto brasileiro e de seu mito da democracia racial). Em alguns dados populacionais, temos uma minúscula parcela de 3% da população que se considera branca, enquanto 59% é mestiza e 37% indígena. Estamos falando, então, de um dos países com maior população indígena do mundo, de maioria aymara e quechua – etnias que fizeram parte do Império Inca.
Por motivos geográficos, as primeiras cidades por onde passamos foram Puerto Quijarro, na fronteira, e Santa Cruz de la Sierra, a maior cidade da região leste da “meia-lua” na Bolívia, não-andina, marcada por um maior desenvolvimento econômico e maior parcela da população branca – sem ser, mesmo aqui, majoritária. É onde se concentra historicamente a oposição ao MAS, partido de Evo, e onde se fomentou nas últimas duas décadas um movimento separatista que guarda semelhanças com “O Sul é o meu país” no Brasil, mas com maior nível de inserção social. Tanto na arte de rua quanto nas instituições públicas é possível ver a promoção do nacionalismo camba (palavra que se refere à região), reforçando uma identidade à parte do resto da Bolívia.
Em uma caminhada rápida pelo centro de Santa Cruz, vimos uma exposição de fotos nas ruas, organizada pelo Manzana 1 Espacio de Arte, sobre os incêndios na Amazônia boliviana – que foram muito mobilizados discursivamente na região contra o governo de Evo. Visitamos também o acervo da Casa Municipal de la Cultura, cuja foco era ressaltar artistas da região e obras de arte que retratassem elementos culturais e históricos crucenhos. Pode ser uma leitura enviesada por nossas expectativas negativas, mas tudo na cidade parecia ressaltar a rejeição à identidade indígena boliviana. Ainda assim, sem que a narrativa branca consiga pará-lo, corre pela cidade o Rio Piraí, nome Guarani que também batiza alguns rios pelo Brasil.
Ao chegar nos Andes, seja na parte sul da Bolívia ou mais central, a sensação foi bastante diferente. Mesmo em cidades turísticas, como Uyuni ou Copacabana, era nítida a grande presença das bandeiras wiphala e de uma intensa campanha de agitação política nos muros realizada pelo MAS – embora sempre houvesse disputa nos muros com pixos contrários. Do lado do MAS, a consigna de que Evo representa o povo e que garante um futuro seguro. Em oposição, principalmente a denúncia da fraude eleitoral e da intenção autoritária de se manter no poder, assim como uma suposta ligação com o narcotráfico ou xingamentos genéricos (alguns dos quais racistas).
Diferentemente do Brasil, não há uma crise econômica para acusar e mesmo o pacote megaobras devastadoras e corrupção, plausível no contexto boliviano, parece ser pouco mobilizado nos muros. Cabe notar que há muitas pixações anti-Evo que explicitamente negam conjuntamente a oposição de direita, seja Mesa, Camacho ou Áñez. Também chama atenção como a grande capacidade de agitação do MAS é centrada no fortalecimento do ícone Evo Morales – um pixo do grupo feminista anarquista Mujeres Creando, que enche os muros das cidades com mensagens de luta, provoca: “não é embelezamento da cidade, é apenas campanha eleitoral”.
A hegemonia do MAS-IPSP e suas tensões
Algumas diferenças significativas para o processo brasileiro são a primazia do partido Movimento ao Socialismo – Instrumento Político pelo Soberania dos Povos (MAS-IPSP) como representante da esquerda. Primeiro, por não existir oposição de esquerda com expressão eleitoral; depois por se tratar de um modelo de governo que não se pauta explicitamente na coalizão com os partidos tradicionais, ainda que formas de conciliação de classe estivessem certamente presentes. Além da presidência entre 2005 e 2019, o MAS ainda tem, neste momento, a maioria do legislativo federal e de governadores do país.
A chapa Evo-Linera, chamada de união “poncho e gravata”, se formou como o resultado de um grande processo de unidade entre partidos de esquerda e movimentos sociais, incluindo bases sindicais de agricultores cocaleros, mineiros, organizações aymaras e quechuas, e setores da intelectualidade marxista, como o próprio vice-presidente Álvaro García Linera. Além da aposta eleitoral no MAS, esses setores compuseram o chamado Pacto de Unidade, uma coordenação de movimentos sociais que atua junto ao partido. É a partir da reivindicação histórica da coca como uso tradicional indígena e da participação nas guerras da água e do gás, no início dos anos 2000, que esse polo aglutina força para governar o país e conquistar as mudanças que se seguem (nacionalização dos hidrocarbonetos, nova constituição do Estado Plurinacional com direitos indígenas, queda da pobreza extrema a menos da metade dos padrões anteriores, fim do analfabetismo, sistema universal gratuito de saúde, lei da identidade de gênero, etc).
No entanto, essa hegemonia política também sofreu alguns baques relevantes no último período. O Pacto de Unidade sofreu baixas já em 2011, com a saída da Confederación de Pueblos Indígenas de Bolivia (CIDOB) e do Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qullasuyu (CONAMAQ), no contexto da luta contra uma grande estrada que Evo buscou construir sobre a território indígena de TIPNIS, parte do desenvolvimentista e predatório plano IIRSA que o governo executou, momento marcante de afastamento com alguns setores populares. Seu projeto de uma nova reeleição também não foi bem visto em parte de sua base organizada, o que impediu distintos setores de se levantar em defesa de seu mandato.
Antes mesmo da renúncia, após as eleições, sindicatos urbanos e camponeses buscavam aglutinar um campo de ação por fora do MAS, como pudemos ver em cartazes que continuam nos muros de La Paz. No entanto, com a dianteira no golpe assumida pela direita e a extrema-direita, implementando um regime de forte repressão aos protestos para legitimar o que chamam de “saída constitucional”, esses setores não parecem ter sido capazes de oferecer uma saída por fora do MAS. O partido de Evo, por sua vez, é quem mantém maior capacidade de denunciar o golpe de Estado, a repressão do novo governo ilegítimo e apontar caminhos de luta, ainda que estejam, nesse momento, voltados prioritariamente à disputa eleitoral – mesmo a COB, central sindical mais independente e que havia chamado pela renúncia, já declarou que está junto ao MAS para as eleições de maio.
Independente disso, é visível que existe um campo aberto de crítica de esquerda aos governos do MAS. A Plural Editores, maior editora do país, que conta também com algumas lojas físicas, é especializada em temas de história, sociologia e política, publicando prioritariamente autoras e autores de esquerda, muitos dos quais bastante críticos. Temas como a formação social boliviana, a composição de classe, o racismo e o colonialismo, os limites da Constituição Plurinacional e o modelo de desenvolvimento subordinado e extrativista são frequentes nos títulos publicados, revelando um intenso processo de debate intelectual associado ao processo de mudanças sociais recentes.
Uma das autoras que se descata é Silvia Rivera Cusicanqui, que investigou as cosmovisões aymara e quechua, a teoria anarquista e a colonialidade, área onde elaborou o conceito ch’ixi como alternativa para superar as ideias de mestiçagem e multiculturalidade. No livro Mito y desarrollo en Bolivia: el giro colonial del gobierno del MAS, publicado pela Plural em 2014, Silvia Rivera defende que houve uma guinada colonial ao longo dos governos do MAS.
Nossas visitas a sebos e feiras de livros ainda revelaram autores clássicos da esquerda, como Che Guevara, Karl Marx, Eduardo Galeano e Fausto Reinaga, competindo nas mesmas prateleiras que Paulo Coelho e livros de auto-ajuda – algo difícil de imaginar no Brasil.
Outro ponto relevante de oposição de esquerda ao MAS se encontra no grupo feminista anarquista Mujeres Creando. Surgidas há cerca de 20 anos, atuando principalmente com propaganda de rua, elas alcançaram uma posição de grande inserção no debate público. Vimos María Galindo, um dos principais nomes do grupo, ser convidada como debatedora em um programa de auditório na grande mídia, dentro da discussão sobre uma reforma na lei do feminicídio do país. Ela também possuía a coluna semanal mais lida no influente jornal Página Siete que, não por acaso, foi tirada do ar na última semana, após alguns textos críticos à presidenta Jeanine Áñez – o mesmo não havia acontecido durante mais de 10 anos de críticas contínuas do grupo ao machismo de Evo Morales e de seu governo.
As Mujeres Creando ainda organizam atos e atividades com frequência, possuem uma sede-café em La Paz, uma estação de rádio e estão estruturando serviços de apoio a mulheres vítimas de violência, apoio jurídico para divórcios e um espaço de oferta de empregos para mulheres. Por outro lado, os setores próximos ao MAS acusam as Mujeres Creando de dourar a pílula do golpe de Estado e estar afastadas das camadas mais populares, indígenas e campesinas – na entrevista que vimos na televisão, Galindo apenas apontou timidamente que não viam “um ambiente democrático para as eleições de maio”; na capa de sua página de facebook, ainda está um dos posters do grupo acusando Evo Morales pelas queimadas na Amazônia; e em nossas duas visitas à sede-café do grupo, ele realmente parecia frequentado mais por uma juventude branca e urbana com bastante acesso, bastante diferente do perfil do país.
Trópico de Cochabamba, centro da luta cocalera
Um relato de dezembro que circulou em algumas mídias populares brasileiras foi o texto do jornalista Ollie Vargas chamado “Chapare, território livre da Bolívia, expulsou o regime golpista”, que naturalmente nos fez incluir a região no roteiro. O jornalista que escreve para a teleSUR em inglês relata que essa região cocalera que envolve várias cidades e vilas havia expulsado a polícia e os militares por seu apoio ao golpe, instituindo uma polícia comunitária baseada nos sindicatos – consequência de um longo histórico de mobilização popular e auto-organização que dura décadas. Chapare possui a maior concentração de plantações de coca e foi, historicamente, o local mais ameaçado pela guerra às drogas promovida pelos EUA, que trouxeram à região a militarização e a perseguição ao sustento e costume indígena tradicional. O relato ainda contava como a população estava mobilizada para fortalecer a luta contra o golpe de Estado e apoiar a candidatura do MAS nas eleições de maio.
Frente a esse testemunho, nossa visita à cidade de Sacaba, capital do Trópico de Cochabamba (nome pelo qual Chapare é conhecida), foi um pouco frustrante. A pequena cidade parecia viver um dia bastante cotidiano, de calor, comércio vibrante nas ruas e conversas amenas entre a população. Vimos uma considerável presença policial nas ruas da cidade, principalmente da Guarda Municipal, mas também alguns militares, sem que parecesse haver hostilidade ou tensão. Mesmo os muros, testemunho recorrente das mobilizações e mensagens de luta, estavam bastante calmos – no máximo, eventuais pinturas eleitorais de “Evo 20-25”. Após a data em que estivemos lá, o mesmo jornalista postou outras notícias de mobilização na região de Chapare, incluindo vídeos de pessoas na entrada da cidade Villa Tunari para evitar o retorno das forças policiais, indicando que deveríamos ter buscado outras localidades para além da capital Sacaba.
Ainda assim, foi de lá que pudemos ir visitar a Puente Huayllani, onde havia um vivo memorial para as vítimas do episódio chamado de Massacre de Sacaba, quando oito manifestantes contra o golpe foram mortos em novembro, em um trancamento da via rápida que leva à entrada de Cochabamba. Mesmo após dois meses do massacre, o local ainda está bastante frequentado por familiares e amigos dos mortos, com dezenas de velas acesas, bandeiras wiphala e uma verdadeira montanha de flores recém-colocadas. Nossa intenção inicial, que era ir ao local para conversar com militantes mais envolvidos com a situação geral, foi abandonada – a cena era de choro e desolação pelas vidas perdidas, de forma que pareceu mais adequado apenas prestar nossa solidariedade e luto. Além do Massacre de Sacaba, as forças repressivas bolivianas são responsáveis por outro massacre durante as manifestações contrárias ao golpe, o Massacre de Senkata, na cidade de El Alto, ao lado da capital La Paz.
Papel da mídia e busca por informação
Mesmo para o padrão brasileiro de mídia empresarial, bastante marcada pela criminalização dos movimentos sociais e mesmo pela manipulação de debates presidenciais, como retrata o documentário Muito Além do Cidadão Kane, impressiona a situação da mídia boliviana.
Por um lado, o caráter racial. Em um país em que os rostos brancos nas ruas da cidade são quase exceção, os grandes canais de televisão parecem se situar na Noruega – além da quase totalidade de pessoas brancas, ainda se nota a objetificação das mulheres em todos os horários e programas. A linha editorial, por sua vez, vai além do clássico bloqueio midiático sobre o cotidiano dos pobres e as lutas populares. A vinculação dos territórios de mobilização indígena e cocalera com o crime organizado é constante, como no caso de Chapare. Compramos no dia 16 de janeiro o jornal impresso oficial do Estado boliviano: a foto de capa é a presidenta Jeanine Añez condecorando policiais da força de operações especiais (UTOP) por seu trabalho durante o golpe com a palavra democracia escrita em caixa alta – a polícia assassina, responsável pelo massacre de Sacaba, recebendo o prêmio pelo trabalho bem feito das mãos da elite do país. O jornal ainda não se refere ao presidente deposto e exilado, Evo Morales, por seu nome ou seu ex-cargo, apenas como “fugitivo” ou “cocalero”. Outras mídias ainda se referem a ele frequentemente como “índio”. Demonstrações de um verdadeiro ódio racial e de classe por trás da grande mídia.
Não é sem motivo, então, que a busca pela democratização da mídia é uma pauta frequente entre a esquerda boliviana e que as alternativas estejam mais desenvolvidas do que no Brasil. Um exemplo é o canal de televisão Abya Yala TV, que opera desde o final de 2012, com apoio do Governo do Irã e com grande afinidade ao governo de Morales. Seu jornal noticiário, ao contrário dos outros canais, é apresentado por uma jornalista indígena e as notícias são apresentadas também em aymara e quechua, além do espanhol. Em muitas bancas de jornal, principalmente pelas ruas de Santa Cruz, é possível encontrar por 5 bolivianos (3 reais) o Visión Z, um jornal impresso semanal explicitamente de esquerda, com muitas referências marxistas e indígenas, analisando geopolítica e notícias locais. A maior referência de rádios populares é a Kawsachun Coca, financiada por federações sindicais da região do Trópico de Cochabamba, que mantém sinal de rádio em diferentes localidades do país e atua também nas redes sociais com dezenas de notícias diárias de um alcance muito grande, mesmo em comparação com as maiores mídias independentes brasileiras. Por fim, algumas contas no Twitter foram bastante úteis para romper o cerco midiático em nossa estadia, em particular o perfil do jornalista Ollie Vargas (MintPressNews e teleSUR) e da Prensa Wiphala.
Ao mesmo tempo, são inúmeras as denúncias de censura e perseguição às mídias populares ou críticas à linha editorial da imprensa hegemônica desde novembro. Os canais teleSUR, fundado pelo governo venezuelano, e RT en Español, canal russo, foram retirados das TVs por assinatura. Dezenas de rádios comunitárias saíram do ar, algumas após terem seus equipamentos atacados – o mesmo pode acontecer com a Radio Kawsachun Coca, cujas torres de transmissão o Ministério da Comunicação pediu para serem tiradas do ar em janeiro. No canal Abya Yala, em novembro, houve ameaças de violência de grupos pró-golpe a suas trabalhadoras, que chegavam a portar dinamites. Na virada do ano para 2020, as trabalhadoras da Abya Yala tomaram a direção da empresa em defesa de seus empregos e liberdade de atuação, contra rumores de falência da empresa ou de revogação da licença que permite ao canal estar no ar. Na Bolívia, está mais nítido do que nunca que a comunicação é mais um campo de batalha na luta social.
O dia 22 de janeiro
A mídia boliviana acordou diferente no dia 22 de janeiro – feriado nacional da instituição do Estado Plurinacional da Bolívia. Um discurso público de Evo Morales era tradicionalmente televisionado e marcava as comemorações, o que não aconteceu pela primeira vez neste ano de 2020. Exilado na Argentina, Evo falou ao povo boliviano em um Ato Cultural comemorativo no país vizinho, mas sem transmissão ao vivo. Desde o final de 2019, o dia 22 de janeiro estava sendo divulgado como um dia de grandes marchas contrárias ao golpe de Estado, coincidindo com o dia final do mandato da senadora Jeanine Áñez, quando o MAS buscaria pressionar por sua saída
Foi em 22 de janeiro de 2010, através de um decreto presidencial, que foi instituído o Estado Plurinacional. Um ano antes, a nova constituição boliviana, a qual prevê o Estado plurinacional, assim como a autonomia e autodeterminação dos povos originários, havia sido aprovada, após ser aceita em referendo popular. A data também coincide com o início dos mandatos presidenciais, o que fez com que a contagem de tempo da refundação do Estado, embora formalizada em 2010, seja 2006 – dia em que Evo Morales assume, pela primeira vez, o cargo de presidente. Há uma vinculação enorme dos avanços em direitos sociais ou infraestrutura com a pessoa de Evo Morales: ele personifica as mudanças na Bolívia, inclusive com sua foto em todas as placas de obras públicas realizadas no país – cultura que foi proibida por decreto enquanto estávamos lá.
Nas ruas de La Paz, no dia anterior ao feriado, perguntamos para alguns jovens de Sucre o que eles achavam que aconteceria no dia 22: “Grupos vândalos armados que querem voltar ao governo vão tomar a Praça Murillo, tomem cuidado!”. Eram histórias desencontradas, mas cheias de medo, que pairavam sobre La Paz. Quando o dia 22 raiou, achamos que tudo pareceria luta ou festa, mas não pareceu nada. Andamos pelas ruas, bastante vazias, até chegar à Praça Murillo, local turístico onde se encontra a Catedral de La Paz e a sede do governo boliviano, totalmente cercada por policiais e pelo exército. Só funcionária pública entra na praça, foi a resposta do policial a uma senhorinha vendedora ambulante. De alguma forma, os jovens de Sucre estavam certo: a praça havia sido tomada por um golpe, só que meses antes.
Sem conseguir entrar na praça, procuramos perto se havia alguma mobilização, grupo de pessoas, bandeiras do MAS. Não encontramos, infelizmente, nem nos pontos mais movimentados de La Paz, nem mesmo em El Alto, cidade vizinha que é referência de organização comunitária e base forte do MAS. A única intervenção política que vimos era um estande na rua onde um senhor quechua defendia a alternância do presidente do partido para uma liderança da etnia, visto que Evo Morales é aymara. Alguns panfletos e um pequeno cartaz, apenas isso.
Depois, lemos na internet que uma pequena marcha aconteceu em El Alto, sem que a tivéssemos encontrado – ao contrário do Brasil, em que as redes sociais tomaram um papel excessivo nas tentativas de mobilização, parece que as convocatórias circulam exclusivamente por outros meios, seja por cultura política ou por segurança. Também houve paros (fechamento de vias) e manifestações em algumas partes do país, incluindo um ato de tamanho expressivo em Cochabamba, com presença de lideranças do MAS. Semanas antes, Evo havia falado em formar milícias populares – logo seguido de uma retratação pública – e o jovem líder cocalero Andrónico deixara entender que a resistência pacífica se encerrava no dia 22. No entanto,o que percebemos, acompanhando as expectativas e notícias locais, foi a construção de uma narrativa de unidade do MAS para as eleições de maio, optando por estagnaras ações de rua, em um aceno à opinião pública de centro, para cavar a vitória da chapa abençoada por Evo, o ex-ministro da economia Luis Arce Catacora e o ex-chanceler David Choquehuanca – Andrónico, que havia sido nomeado pelos movimentos sociais como candidato a vice-presidente, foi escolhido por Evo apenas como candidato a senador, por sua linha política mais combativa e pela criminalização judicial que vem enfrentando do governo de Áñez.
À tarde, a Praça Murillo foi aberta à população e parecia festa, com crianças correndo e doces típicos. Ainda assim, o amargo da grande quantidade de policiais no local tirava um pouco o brilho dos olhos mais atentos. Janine Añez proferiu o discurso oficial do dia – sem ser capaz de mobilizar as massas, procurou se diferenciar do MAS ao liberar as emissoras de televisão da obrigação de transmiti-lo.
A luta dos povos frente a um futuro incerto
Nos dias que estivemos na Bolívia, foi possível mergulhar em elementos que tentamos costurar nesta escrita. Das eleições duvidosas, uma renúncia forçada por um golpe de Estado, à efervescência que tomou as ruas do país e foi brutalmente reprimida pela polícia. Tudo isso aliado a figura de Evo Morales, que por muitos anos construiu um governo fortemente popular. Mesmo depois de alguns meses de sua saída do país, o ex-presidente aymara ainda é a figura central no cenário político do país. No entanto, assim como é necessário assumir os avanços sociais da Bolívia nos anos de Evo, é preciso olhar também para o atual momento e seus dilemas como resultados da construção política e das escolhas tomadas por seu campo político.
O MAS teve 14 anos de governo na Bolívia e agora se vê fora do poder. Apesar da origem nos movimentos sociais e de um histórico de articulação entre as ruas e os parlamentos, a estratégia está focada nas eleições, terreno de disputa que o partido domina bem e onde se diz otimista. Uma apostana via eleitoral que segurou os ânimos das classes oprimidas da Bolívia e nos fez encontrar um país mais obediente do que esperávamos.
Neste momento, as frações da direita que efetivaram o golpe de Estado parecem se digladiar e enfraquecer para as eleições de maio, onde se fala em até cinco chapas distintas. O MAS, por sua vez, parece ter unificado suas bases no apoio à chapa Arce-Choquehuanca e caminha fortalecido às eleições, incluindo mesmo sindicatos e organizações que defenderam a renúncia de Evo – embora setores tenham demonstrado insatisfação pela escolha de um branco para a cabeça de chapa. No entanto, resta uma dúvida para o médio e longo prazo: essa linha apontada pelo MAS será capaz de ir além de uma pauta defensiva, cedendo cada vez mais à direita em troca de estabilidade, e avançar junto aos movimentos sociais para uma verdadeira libertação das classes populares bolivianas?
Em uma entrevista realizada na semana passada com uma mídia argentina, perguntado sobre a possibilidade do governo golpista não reconhecer uma vitória eleitoral do MAS, Evo responde paradoxalmente que acredita que isso acontecerá e exigirá um “plano B”. Analisando os rumos conturbados da geopolítica regional, parece implausível que os golpistas aceitem facilmente sair de cena. Isso nos traz outra grande questão para o próximo período: que preparação será feita para o momento em que a disputa política migrar, novamente, para meios mais diretos? E, principalmente, com que forças populares se poderá contar?
Para nós, surgem algumas respostas do sentimento que pairava no ar de que os povos da Bolívia não ficarão de joelhos a nenhum opressor. A sete cores no ar, nos grandes centros e nas cidades do interior, estava a wiphala. Mais do que a derrubada de um governante, foram os ataques à wiphala que trouxeram os movimentos populares de volta às ruas durante o golpe. Dos Ponchos Rojos no campo às estudantes e trabalhadoras da Universidade Pública de El Alto (UPEA), universidade símbolo das lutas no país, ecoou o grito de que a wiphala se respeita. Porque, ao contrário do que considera o MAS ou a elite branca, a bandeira representa muito mais do que um partido, mas sim a afirmação da existência e dignidade das maiorias populares do país – unidade simbólica e concreta dos de baixo por um processo histórico de emancipação que precisa continuar, independente da liderança política que se disser representante dela.
As estradas na Bolívia nos fizeram pensar em um continente unido não só por sua história de massacre colonial, mas erguido na luta com as bandeiras indígenas que ainda seguem de pé: não só a wiphala, mas também a bandeira mapuche, que está presente na luta das ruas chilenas, e todas que representem os povos oprimidos originários e latinoamericanos. Povos também do nosso Brasil continental, nações indígenas que seguem firme de pé frente a todo o avanço desenvolvimentista de interesse capitalista e colonial. Território sem fronteira da América Latina, em que língua nenhuma nos une porque cabem todas dentro de nós. Território sem fronteira, mas marcado pelas linhas de luta pela terra, em uma guerra contra o latifúndio que nos afunda. Na Bolívia vimos como um país pode ser muitos e como isso ainda é pouco dentro dos sonhos que temos. A Bolívia nos faz lembrar das lutas que urgem em toda a América Latina, lugar em que não se respira outra coisa – desde os Andes até as quebradas do Brasil.
Wiphalas de pé!
Y la hoja de coca no es droga!
Rompiendo las barreiras, una sola bandera
América Latina en busca de una tierra sin guerra!
(Ukamau y Ke – AndinoAmérica)