O que se esconde por trás de um projeto de garantia de assistência médica no Brasil?
Um grande problema ocorre na saúde pública nacional: trabalhadores e trabalhadoras das zonas mais remotas ou consideradas mais perigosas sobrevivem sem assistência de uma equipe com profissionais médicos, enfermeiros, técnicos e agentes de saúde. As formas de cuidar surgem como podem, recorrendo a métodos tradicionais em zonas interioranas ou aos centros urbanos distantes quando assim é possível, mas o lugar onde moram esses sujeitos permanece carente de cuidados especializados em saúde. Aqueles que não têm dinheiro para pagar, adoecem e fenecem pouco a pouco.
O nome deste problema: provimento. Em todo o mundo, aqueles que moram distante dos centros urbanos passam pelo mesmo mal. No Brasil, enquanto a região Sudeste conta de 2,81 médicos para cada 1000 pessoas, a região Nordeste conta com a metade, 1,41 médico por 1000 pessoas. E mesmo dentro da região Nordeste, por exemplo, a diferença é gritante – 4,54 médicos para 1000 pessoas nas capitais comparado a 0,54 médico para 1000 pessoas no interior – são 9 vezes mais médicos na capital do que no interior.
As soluções discutidas no campo do Estado se mantém quase sempre alheias às opiniões tanto daqueles que estudam e praticam a saúde, os profissionais, quanto daqueles que se utilizam desse conhecimento, os usuários. As pesquisas no campo insistem em alguns pontos para obter sucesso na garantia deste direito: infraestrutura adequada, valorização da atenção primária, ampliação da capacidade de ação deste tipo de atenção, valorização dos profissionais com bons salários e educação continuada, controle dos serviços pelo povo, abordagem da saúde da comunidade e participação ativa das mulheres na organização dos serviços. Apesar disso, diversos governos só conseguiram até o momento abordar o aspecto da quantidade de médicos (e não tocam no nome de outros profissionais essenciais da equipe de saúde básica) e a proposta do Programa Médicos pelo Brasil (PMB) – Medida Provisória n. 890/19- é mais um programa que agora está acompanhado com pitadas de privatização e ataques à saúde pública.
A insistência no simplismo de contratar mais médicos é um projeto de implantação antiga e lenta no Brasil. Criado e implementado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em parceria com o Banco Mundial, o objetivo desta política é o ingresso cada vez maior de capital privado na saúde, aumentando o lucro e a gestão desses serviços por grandes empresários do ramo através da consolidação dos seguros de saúde privados, os famigerados planos de saúde.
Nesse sentido a criação de uma Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS) pela lei que cria o PMB, se apresenta com os mesmos moldes da empresa pública que controla os hospitais universitários, a EBSERH, e vem com a possibilidade de compra pelo governo de serviços médicos, medicamentos e exames. A intenção chega a ser tão escancarada que no conselho deliberativo da empresa não há qualquer menção acerca da participação popular, seja dos trabalhadores ou dos usuários, porém, lá está a cadeira de um representante das entidades privadas da saúde (artigo 10, inciso IV). Mesmo após várias evidências mostrando a incompetência do setor privado em gerenciar os serviços dos quais nós dependemos – o preço superfaturado dos medicamentos, desvios de verba, o tempo menor de consulta -, os governos continuam estimulando a entrega daquilo que é do povo.
Até mesmo a propostas de contratação para os médicos nada mais são que mentiras. Há promessas de grandes salários (valores variando entre 12 a 18 mil reais) e uma carreira que valorizaria a remuneração apenas e não a mobilidade regional. Como já dito, para a Atenção Primária funcionar precisamos que outros profissionais também sejam valorizados e além de condições de trabalho (estrutura, insumos, etc.). Mesmo que se pague apenas o médico fica meio difícil acreditar nessa aplicabilidade já que estamos com recursos da saúde congelados por 20 anos pela PEC da Morte (EC 95), sem falar que se pretende ampliar a formação de Médicos de Família e Comunidade, mas, com que recursos?
Salários altos não são suficientes para fixar médicos em regiões mais isoladas. Além de uma remuneração justa para o conjunto dos trabalhadores da saúde o que precisamos é de um plano de carreiras que abarque não só médicos, mas que levem em conta a mobilidade regional, em que, alguém começaria a trabalhar numa área mais afastada e com o passar dos anos acabaria em uma cidade maior, dentro da mesma carreira.
Analisando os posicionamentos públicos dos sujeitos que compõem o Ministério da Saúde (incluindo o ministro Henrique Mandetta) observamos algumas falas e notas, as quais questionam o tamanho do SUS ou até mesmo o fato de que saúde pública não deveria ser pra todos. Obviamente, o interesse em investir na atenção primária atravessada por uma administração regida pelo direito privado, com contratos precários de trabalhadores e subfinanciada está mais que evidente para nós, bem como o discurso urgente de que a saúde não seria mais responsabilidade do Estado, abrindo espaço para planos de saúde e empresários ligados ao ramo, como já mencionado.
Somado ao Médicos Pelo Brasil há alguns outros planos do governo para mudanças na atenção primária. Entre eles está na forma como se dá o financiamento. Hoje há um repasse de um pouco mais de R$ 2 por pessoa de determinado município para atenção primária em saúde. Chamado de Piso da Atenção Básica Fixo (PAB Fixo). Um valor defasado e extremamente insuficiente para fornecer a atenção primária da saúde para a população. Considerando a dependência da maior parte dos municípios brasileiros de verbas federais. O atual governo federal resolve, então, piorar a situação. O financiamento, em sua proposta, será agora por pessoa cadastrada em uma determinada unidade de saúde. Considerando a impossibilidade de se cadastrar todos os moradores de um municípios, principalmente o com maior dificuldade de acesso (como o sertão nordestino e a região amazônica) é óbvio que iremos ter uma brutal redução de recursos para saúde. Sem falar que outras fontes de financiamentos também seriam alteradas, como o que prevê o financiamento para os Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) que contam com psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, entre outros profissionais. O financiamento federal desses programas deixaria de existir. Como a maior parte dos municípios dependem de verbas federais, consequentemente a população ficará desassistida e milhares de trabalhadores da saúde iriam se somar à já grande massa de desempregados.
Mesmo a proposta do Ministério da Saúde de concentrar a oferta deste serviço público em um leque mínimo e básico para a população, com a valorização de apenas um profissional (o médico), não é possível dar certo considerando a ampliação de corte de recursos que já havia ocorrido no Governo Temer. Se considerarmos o lucro cada vez maior do sistema financeiro, que se apropria de mais de 40% do orçamento da união, enquanto a saúde e educação giram em torno de 4% cada uma, sabemos que existem recursos, o problema é que ele não é destinado para maioria da população. Mais recursos é fundamental, mas além disso uma saúde centrada na necessidade da população e não do mercado é outra linha a ser seguida. Somado a uma gestão que tenha controle dos trabalhadores e usuários e que não seja mais por indicação politiqueira.