13 de outubro de 2019 – Bruno Lima Rocha
Introdução ao tema
Escrevo estas palavras enquanto o povo equatoriano joga sua sorte nas ruas de Quito, Guayaquil, Cuenca e demais municípios e regiões do país. Este texto não pretende fazer um balanço crítico da luta indígena e social contra o Pacto 883 do traidor Lenín Moreno e tampouco uma análise de conjuntura a partir da intervenção do FMI no país. O tema de fundo é outro.
Pode parecer meio pretensioso, mas entendo que é necessário desenvolvermos os debates urgentes para a esquerda no século XXI, ao menos as esquerdas mais à esquerda operando na e para a América Latina e o Caribe. Os temas são vários e apontam problemas graves. Por exemplo, uma chaga histórica para começar: as correntes autoritárias ainda trabalham com a hipótese de partido único? Ao que parece no discurso sim, embora no mundo prático essa hipótese esteja cada vez mais distante (ainda bem).
E, por outro lado, será que existe vida fora e além da social-democracia? Entendo que sim, mas é preciso formalizar algum modelo de futura sociedade. O “realismo socialista” ou as ditaduras de partido único – com Nomenklatura burocrática, como na antiga União Soviética, ou ainda, no poder na heroica Argélia anticolonial – ou de líderes tirânicos como Enver Hoxha na Albânia ou Nicolae Ceausescu na Romênia, deixaram péssimos exemplos. Tais modelos execráveis de tirania política geram muito combustível para a direita mais asquerosa, a exemplo dos seguidores de Steve Bannon, como o presidente Jair Bolsonaro.
A ausência de crítica é outro problema, pois impede uma análise rigorosa de governos de exceção, como o de Nicolás Maduro, embora este mesmo governo seja heroicamente anti-imperialista e como tal o povo venezuelano deve receber solidariedade incondicional. O seguidismo (como no governo Jango, com o lema “manda brasa, presidente!”) quase sempre é a história de uma tragédia anunciada. Imaginemos a luta equatoriana se a CONAIE não tivesse autonomia organizativa e sua capacidade estratégica intacta após uma década de criminalização pelo governo de Rafael Correa?
Se não queremos isso de jeito algum, logo, queremos o quê? Uma pista: pluripartidarismo de esquerda com uma Constituição Plurinacional? Sim, esse seria o caminho. Dando base para tal, é necessária uma multiplicidade de representações sociais, étnico-culturais e políticas? Sim, óbvio que sim. E a democracia liberal, representativa e burguesa basta? Não, não basta e já está dando seu limite, mesmo no jogo institucional. Logo, qual a defesa de projeto? Uma democracia social com economia parcialmente planificada? Seria o mínimo para compor um ou mais programas comuns, onde as empresas estratégicas estatais deveriam ter controle social e democracia interna como forma de operar como agente do poder de veto da jogatina de partidos fisiológicos e ataques de grupos econômicos – nacionais ou transnacionais. Enfim, nesta retomada da resistência massiva contra o neoliberalismo, é preciso superar – e muito – o triste papel da coalizão de classes e a visão “ingênua” da ação do imperialismo em nosso Continente. Washington (sob tutela republicana ou democrata) não aceita a “coexistência pacífica” e isso está desenhando.
Urge debater o mínimo para ao menos podermos defender ou vir a cometer erros diferentes e acertos mais precisos. E falta teoria, muita teoria.
Teoria do Poder Social como materialização do Pensamento Decolonial?
Estudantes de graduação com quem tenho a alegria e o privilégio de conviver me comentaram algo que tento sintetizar e faço acordo. O “pensamento decolonial” é um absoluto como discurso historiográfico, a revisão necessária, a base discursiva que coloca as Américas de ponta cabeça e faz com que, mesmo não sendo de origem indígena, nos sintamos invadidos em Pindorama e, ainda que metade do país não tenha ascendência africana, nos posicionemos como Palmarinos afro-centrados. Até aí, perfeito, divino maravilhoso como a tropicália.
Mas, e a teoria do poder social que advêm dos territórios em luta e resistência? Falta outro pedaço, incluindo uma teoria econômica que seja ao mesmo tempo ecologicamente sustentável e habilite um território a se defender dos ataques que certamente virão. Neste sentido, é correta a crítica do antropólogo libertário David Graeber. Vale ressaltar que, sua contribuição é fantástica e vale a pena conhecer ao menos a parcela mais política obra. Mas, como quase todo “reconhecido” intelectual anglo-saxão, seu aporte carece de saídas viáveis, ao menos, de formas de vir a pensar em alternativas passíveis de execução. Ressalto que a presença de Graeber, assim como a de Noam Chomsky, é fundamental eu diria. Logo, aqui não se trata de crítica direta, mas sim como parte do debate de quem quer se somar e construir no mesmo caminho.
Pistas de categoria-chave para uma Teoria do Poder Social
Território: parece evidência e obviedade, mas o conceito de território é categoria-chave, dessas poderosas mesmo, para ajudar tanto na defesa dos direitos ameaçados como para ser propositivo a partir de um eixo de resistência. Para além do direito ancestral e inalienável, a defesa e o desenvolvimento autóctone dos territórios indígenas e quilombolas podem ajudar, e muito, muito, tanto o desenvolvimento sustentável e sem agredir os biomas, como também ser embrião de sociedades menos injustas. O conceito de território da mancha metropolitana ajuda também, mas em geral é usado no capitalismo ilegal e na repressão social. Sem querer exagerar o papel dos bons teóricos, geógrafos como Élisée Reclus, Piotr Kropotkin, Milton Santos e Aziz Ab’Saber seriam hoje de uma releitura quase obrigatória para a interpretação da categoria do território, para além do que já existe e é auto-organizado nas extensões de terra dos povos originários ou tradicionais.
Degeneração da liderança: outra categoria-chave é evitar a degeneração da liderança política. Esse é um tema clássico e aqui vai só um início de debate. Reconhece-se que existe liderança política e algumas atribuições facilmente identificáveis como: carisma, oratória, exemplo, dedicação, trajetória, capacidade resolutiva. Mas, quando estas características se cristalizam em uma estrutura de poder permanente?! Piorando. É quando isso se torna culto à personalidade?!
Mazelas típicas: as mazelas no pensamento e propaganda de esquerda precisam ser interpretadas, localizadas e severamente combatidas. Quais fenômenos da interna política levam ao culto à personalidade? Como forças políticas enormes dependem necessariamente de um grupo muito reduzido de “dirigentes”? O culto da liderança não é também um elogio ao individualismo, às lutas mais mesquinhas pelo poder? Creio que a resposta é sim para tudo, logo, a necessidade de criar mecanismos institucionais (das instituições sociais digo) que evitem essas práticas, mas desde o nascedouro das experiências ou de seus saltos organizativos. Na metade do caminho, a correção é bem mais difícil.
Outra mazela é a ilusão do discurso. Qual o maior equívoco da esquerda, não da ex-esquerda, mas da esquerda restante? Determinismo sociológico (em busca da classe ou fração de classe prometida) ou ilusão com as próprias análises que levam a algum tipo de auto-proclamação?! No caso equatoriano, se observa que há tensões entre a população auto-organizada, como a representada pela CONAIE e a FUT, e uma esquerda urbana, mais ideologizada, que busca ver o que há “de proletário” nestas demandas que são anteriores à formação do próprio proletariado. Superar este tipo de alienação livresca é fundamental para toda a América Latina que se organiza de novo e de novo.
Apontando conclusões óbvias
Tomo a ousadia de compilar um guia básico para sair do cientificismo ou da auto ilusão da retórica filosófica mal aplicada na política. A primeira passa pela convicção ideológica. Os valores fundamentais não são negociáveis e ultrapassam até mesmo o caráter das identidades políticas. Não há como tergiversar sobre liberdade política, direito a multiplicidade de representações, democracia direta e projetos autossustentáveis. O que é inegociável é objetivo finalista e demarca as possibilidades da grande estratégia.
Outra dimensão é o ajuste da doutrina do emprego nos períodos históricos determinados. Por exemplo, se a meta é o protagonismo do povo organizado e o empoderamento de diversos sujeitos sociais, as formas de alcançar estas conquistas podem variar ou incorporar elementos novos de mobilização e acumulação de força social. Mas não há como abrir mão destas formas de acumular força, caso contrário, não se tem nada mesmo.
Todas e todos que não confundimos ideologia com ciência e entendemos que a teoria está a serviço da análise e não apenas como reforço discursivo de um sistema de crenças, todos nós, todas nós temos dúvidas teóricas. Mas a incerteza das possibilidades não se confunde com a crença naquilo que é correto diante das possibilidades concretas da vida em sociedade em nosso Continente. Utopia é lugar a ser construído e neste sentido está mais distante uma utopia liberal-republicana com “instituições funcionando perfeitamente” do que um território libertado através do poder do povo organizado. Qual utopia nós queremos? Quem somos nós no curto, médio e longo prazos? Quais instituições substituem e antes, coexistem, com a “normalidade institucional aparente” neste ciclo de “golpes institucionais” inaugurado há dez anos com a derrubada do presidente hondurenho Manuel Zelaya Rosales em junho de 2009?
Ou temos projetos viáveis ou seremos reféns das circunstâncias ou de lideranças cristalizadas sem uma democracia social e participativa operando.
Bruno Lima Rocha (estrategiaeanaliseblog.com / blimarocha@gmail.com / t.me/estrategiaeanalise) é pós-doutorando em economia política, doutor e mestre em ciência política, graduado em jornalismo e professor nos cursos de relações internacionais, direito e comunicação social. Mais importante, é brasileiro e latino-americano.