Texto de Opinião de Guilherme Ulema
Em mais esse 2 de Outubro, alimenta-se a memória e faz-se denúncia dos 27 anos desde o dia em que a Polícia Militar de São Paulo deliberadamente invadiu e aleatoriamente disparou, a torto e a direito, dentro da penitenciária mais superlotada na cidade mais populosa do hemisfério.
O banho de sangue promovido pelo Estado, a mando direto do comando da polícia e com as bênçãos do governador, foi apenas a face mais visível, cruel e sangrenta dessa política que é a própria essência do estado: o encarceramento, a tortura e a morte nos campos de concentração legalizados que a racionalidade liberal convencionou chamar de “presídio”, usando do instituto político do “crime” como elemento autorizador da desumanização e da barbárie.
Ao se completarem 27 anos daquela sexta-feira amarga, as feridas que as balas da polícia, a cumplicidade dos palácios e a resposta cínica do judiciário abriram no cotidiano brasileiro seguem vivas e vertendo sangue de pretos e pobres.
A chacina cometida pelo estado, esse instrumento político das elites, diretamente pensada para findar a existência de 111 pessoas – e destruir de tantas outras -, não foi feita de balas que atingiram somente os corpos encarcerados nestas masmorras do estado moderno a que convencionamos naturalizar como cárcere.
O massacre de carandiru foi responsável pelo parto de um novo jeito de organizar o crime, o tráfico e as existências ‘marginais’ do país, dando à luz o modelo de facção-empresa, que nasce no Primeiro Comando da capital (PCC), mas que hoje é tema comum na vida às margens geográficas e simbólicas das cidades grandes e pequenas em toda a américa do sul.
Além disso, Carandirú expõe à olho nu, há quase 30 anos, que não apenas para a polícia, mas para a mídia oligopolista criadora de senso comum, as vidas que o capitalismo relega à miséria, oprime, encarcera e mata nao tem validade ou direito, sequer à memória.
No marco de mais esse aniversário do terror, esta coluna poderia lembrar com indignação que Luiz Antonio Fleury, então governador, afirmou que não deu a ordem para que a polícia invadisse o presídio, mas que “se tivesse em meu gabinete, teria dado”. Poderia lembrar que o futuro-golpista e sempre-canalha Michel Temer, ao assumir a pasta estadual da Segurança Pública, recomendou que os assassinos envolvidos recebessem o que ele julgava que mereciam: repouso e meditação.
Poderíamos escrever inúmeras linhas sobre o fato de que apenas em 2013 houve um primeiro encaminhamento sobre o caso no judiciário burguês, mas que este segue em aberto por “morosidade”. Poderíamos lembrar que Ubiratan Guimarães, responsável direto pela chacina, apesar de ter sido assassinado em resposta (“aqui se faz, aqui se paga”, leu-se pichado em seu muro), colheu os frutos políticos e financeiros do seu “sucesso” e foi absolvido do crime de ter ordenado a matança.
Porém, Carandirú, apesar do tamanho da barbárie, não é um evento isolado em si.
Trinta anos depois, Carandiru não é só um fato histórico, mais um dos capítulos da absurda história desesperadora do povo negro e pobre na américa. Carandirú é a condensação em ato de muitas das incontáveis opressões que estruturam o capitalismo nos trópicos e que dão o tom de como existem (ou deixam de existir) determinados corpos e sujeitos nesse país.
A política que fez Carandirú possível, aceitável e condecorável por facínoras como o atual presidente do Brasil é a mesma que legitima e organiza os disparos de helicópteros em casas de família e escolas de crianças, é a mesma que naturaliza dezenas de assassinatos de jovens negros todos os dias, é a mesma que não se incomoda que Ágatha, de 8 anos, e outras 15 crianças tenham sido escolhidas como alvo e tenham tido seus corpos cravejados de balas compradas com dinheiro público, apenas para ficar em alguns exemplos recentes desse sufocante 2019.
As grades do Carandiru não são outras senão as mesmas que encarceram Rafael Braga junto de tantas outras e tantos outros, oitocentos mil outros e outras, cujas vidas são ceifadas em nome da justiça. Os gatilhos puxados em Carandiru não são outros senão os mesmos que hoje vitimam tantos outros pretos e tantos outros pobres em todo o país, dentro e (mais ainda!) fora das penitenciárias.
Se, por um lado, é importante seguir fazendo memória, se solidarizando coletivamente às incansáveis famílias que seguem, dia após dia, com a dor debaixo do peito, cobrando respostas e lutando em nome dos homens mortos pelo Estado em 1992; por outro, sobretudo agora, diante de Bolsonaro no poder, é preciso levar Carandirú como marco histórico que exemplifica com horror nosso caminho de lutas, é preciso ampliar os gritos para além da pontualidade desse caso e marcar em cada 2 de Outubro (e em todos os outros dias) a extinção perpétua da prisão e a destruição completa do sistema carcerário como pautas urgentes dos de baixo nesse país.
É necessário, neste dia, marcar que, seja em Carandiru, seja no Presídio Central (essa aberração berrando de desespero em Porto Alegre), seja nas “casas de correção socioeducativas”, seja nas prisões femininas ou em quaisquer métodos “mais humanizados” do cumprimento de penas, não é a superlotação nem as condições desumanas, não são as torturas nem as invasões e chacinas o problema grave nessa história. O problema, à época e agora, é a existência da prisão.
Portanto, é preciso lembrar de 2 de Outubro como a exposição da barbárie, sem nunca perder de vista que nesse exato momento há centenas de potenciais repetições desse horror brasil afora, em cada instalação de execução penal, e que há um novo corpo negro estendido no chão ou jogado à cela a cada minuto em todo canto do país; é preciso responder Carandirú à altura expondo seus responsáveis, entendendo e combatendo seus legados no crime organizado e forjando, a partir das experiências do povo, sem esperar nenhuma ação benevolente dos capitalistas, uma outra segurança e uma outra relação entre as pessoas, eliminando o crime como constructo central das vidas pobres.
E, principalmente, é preciso resgatar nossos gritos anti-ditatoriais, porque o cárcere é o terrorismo legalizado do Estado, um terrorismo que encontra aderência e legitimidade em todos os campos políticos, unindo em sua defesa desde a ultradireita conservadora até a esquerda dita ‘radical’.
As tradições anarquistas, esta única corrente da esquerda que desde seu nascimento ataca o cárcere como lógica e como instituição e que em cada uma de suas revoluções tratou de, imediatamente, abrir as portas e implodir as cadeias, sempre souberam e lembraram que o estado é a negação da humanidade.
E então, com a negação do Estado em mente, resgatar nossos gritos anti-ditatoriais é o único jeito de garantir honra aos mortos e paz aos vivos, e isto significa bradar por justiça, memória e reparação – para que caminhemos, como país, a um cenário em que Carandirú nunca se esqueça e nunca mais aconteça.
Guilherme Ulema
militante da Resistência Popular – Porto Alegre/RS
[Este texto segue em carinhosa homenagem aos corpos tombados e, antes de mais nada, às famílias sobreviventes do terrorismo de Estado ontem e hoje.]