Dois filmes latino-americanos recentes tratam de uma mesma temática: o indígena. São eles Los silêncios, de Beatriz Seigner (2018), em uma coprodução Brasil, Colômbia e França, e Chuva é cantoria na aldeia dos mortos (2019), de João Salaviza Renée Nader Messora, em uma coprodução entre Brasil e Portugal. Além do indígena como centro, há uma outra relação forte, que tem a ver com este primeiro: a relação do indígena com a morte.
Antes de começar a falar propriamente sobre os filmes, é importante comentar como soaria estranho chamar os filmes de filmes latino-americanos, como o fiz, e mais ainda, de filmes brasileiros. Por que isso acontece? Porque os ameríndios não se reconhecem nessa ideia de país como uma totalidade de uma cultura. Antes dos invasores colonizadores não havia margens de território – inclusive porque várias tribos indígenas eram nômades. São sociedades que até hoje – quando persistem, diferente de alguns países latinos como a Argentina, que assassinou todos os habitantes autóctones – sobre da opressão desses países que se construíram sobre um cemitério indígena.
Feito isso, podemos entrar no debate mais propriamente cinematográfico. São dois filmes que a nós ocidentais podem soar extremamente lentos. Estamos acostumados ao tempo veloz do mundo globalizado de capitalismo avançado e essa perspectiva se tensiona quando justaposta à do indígena, que anda mais devagar e cujas digressões, lembranças e outras metafísicas acontecem e dão o tom da narrativa. Por isso o filme é mais lento e repousa sobre paisagens em cenas que duram minutos a fio. São filmes de estética parecida com os do diretor tailandês Apichatpong Weerasethakul, de obras maravilhosas como Mal dos trópicos (2004), Tio Boonmee que pode recordar suas vidas passadas (2010) ou Síndromes e um século (2006).
A relação dos ameríndios com a morte, mencionada acima, é diferente da nossa ocidental. É o que o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro chamou de perspectivismo ameríndio, que significa, grosso modo, que para o indígena existem vários pontos de vista e não somente o do ser humano. Por exemplo: a onça tem ponto de vista, ou seja, raciocina como um humano; uma árvore ou uma cachoeira podem ter pontos de vista (não é à toa que em Chuva é cantoria na aldeia dos mortes vemos duas cenas relativamente longas em que nada mais acontece que um indígena e uma cachoeira em silêncio, como que conversando pelo barulho forte das águas). E, para além disso, os mortos também tem ponto de vista. Isso quer dizer que algumas pessoas das tribos podem acessar esse mundo e conversar com os que já se foram. É uma concepção radicalmente oposta à nossa e que é tratada de maneira muito natural nos longas; são filmes que nos mostram uma outra vida, esquecida por nós, e que correm sérios riscos com governos como o de Jair Bolsonaro, que para fins de negociatas políticas quer dar aos ruralistas (assassinos históricos dos povos indígenas) a demarcação de terras que hoje pertence à FUNAI. Assunto importante e atual, que os filmes tratam e denunciam, como boas obras de arte.
Rodrigo Mendes