Disputa de narrativas
Passados alguns dias desde a primeira manifestação massiva nas ruas contra o governo Bolsonaro – que mobilizou mais de um milhão de pessoas em pelo menos 200 cidades por todo o Brasil –, já é possível enxergarmos como alguns atores na cena macropolítica do país se posicionarão nos próximos dias. Poderíamos abordar o isolamento cada vez maior do presidente com relação a setores do próprio andar de cima: Congresso cada vez mais distante do Planalto, inclusive na tentativa de blindar os projetos (estes sim, acima de tudo) que visam à retirada de direitos do povo, Judiciário avançando nas investigações sobre a organização criminosa chefiada pelo filho Flávio… Poderíamos também lançar um olhar sobre a queda livre nos índices de aprovação ao governo, assim como sobre alta recorde (em tão curto espaço de tempo) da taxa de rejeição, sinais evidentes de uma desilusão coletiva gerada a partir da não materialização das expectativas criadas na polarização eleitoral de 2018.
Mas sobre isso deixemos que outras pessoas, analistas e organizações políticas em condições de fazer uma melhor leitura da conjuntura, se debrucem. O que nos toca, comunicadores populares, é falar sobre as narrativas em disputa sobre o significado desse histórico 15M.
Setores do oligopólio de mídias (que, de fato, nem chegaram a se alinhar integralmente ao presidente eleito – não consideramos aqui o período das eleições), como o grupo Folha, os Mesquita, os Marinho e os Civita, tratam de se aproveitar do movimento para bater no governo. Mas, ao mesmo tempo, é notória a intenção de descolar as trapalhadas do Planalto da agenda de retirada de direitos, como a Reforma de Previdência (o que significa o fim da aposentadoria) e a desvinculação total do orçamento (que, na prática, vai levar à morte as políticas públicas – ou, no mínimo, torná-las ainda mais reféns dos governos de turno). E, para isso, chegam ao absurdo de isolar a pauta da Educação da luta contra a Reforma da Previdência. Ora, quem minimamente acompanhou a construção da agenda deste 15M sabe que a mobilização teve esse duplo caráter: em defesa da Educação e contra a Reforma da Previdência. Ao contrário do que os editoriais desses grupos de comunicação acusam, o oportunismo sobre a mobilização massiva não acontece por setores da esquerda, e sim por eles próprios.
A tentativa é semelhante ao que esses mesmos setores tentaram e, em alguma medida, fizeram em 2013: apropriar-se do grito das ruas e direcioná-lo conforme seus interesses. Por isso mesmo, a insistência em comparar esse 15M ao que as Jornadas de Junho representaram (para esses grupos, não para a cena política como um todo), encaixando-as dentro de uma narrativa que se seguiria em 2015 e culminaria no golpe com apelido de impeachment em 2016. Nessa mesma linha, é possível entender o rompimento entre alguns grupos de direita (como o MBL) e Bolsonaro. Se, por cima, o oligopólio de mídia tenta dar o tom da narrativa, tais grupos, por baixo, devem preparar-se para disputar o simbólico das ruas.
Os riscos pela esquerda
Por outro lado, há que se reconhecer algum acerto por parte dos editoriais e dos colunistas que trabalham a serviço da mídia corporativista, e que inclusive parece passar batido por boa parte da esquerda. Sem sombra de dúvidas, essas mais de um milhão de pessoas não são, em sua maioria, favoráveis, ou sequer sensíveis, a pautas como a prisão de Lula. Façamos um comparativo grosseiro: a prisão de Lula, em Porto Alegre, levou cerca de cinco mil pessoas às ruas; já nesse 15M, estimativas dão conta de 80 mil.
O risco, nesse caso, está em uma carta que os de cima mantêm guardada para o caso de perder a disputa pelo significado das ruas: vincular as manifestações à pauta do Lula Livre. E as direções petistas, na sua cega obsessão por manter a hegemonia sobre a esquerda, correm o risco de comprar essa narrativa e, com isso, esvaziar o potencial mobilizador que existe hoje no campo popular. A própria repercussão “acrítica” que certas páginas na internet, próximas ao Partido dos Trabalhadores, dão a editoriais da Folha e do Globo parece carecer de um entendimento mais “fino” em relação aos interesses da mídia corporativista, engano que remete à equivocada afirmação de José Dirceu. Na época o então ministro da Casa Civil teria dito, em conversa com Roberto Requião (MDB), que o governo “já tinha a Globo”. Dirceu recentemente negou a frase, mas uma lógica similar, que confunde o oligopólio de mídia com um possível aliado, parece ainda prevalecer em alguns canais de comunicação ligados ao PT.
Comunicação popular: o papel que cumpre à mídia independente (e ao Repórter Popular)
Sugerimos aqui que o número massivo de pessoas que aderiram ao 15M seja analisado a partir de duas chaves de leitura. Uma delas é o sentimento generalizado de piora nas condições de vida, que vem em uma crescente já há alguns anos e que ainda não parece estar próximo do fim. O voto em Bolsonaro, em outubro passado, pode ser entendido, ao menos em parte, como um rechaço à “velha política” (de acordos espúrios entre elites oligarcas), no sentido de entendê-la como causadora dessa piora. A vitória do ex capitão do exército teria canalizado certo desejo difuso por mudanças imediatas, enxergando, por oposição, em Haddad uma continuidade do modo de governar que, em tese, teria levado a atual crise. Passada a polarização eleitoral, o governo Bolsonaro não consegue sequer apresentar uma narrativa (mesmo que ilusória) capaz de sustentar a confiança que obteve nas eleições, e isso talvez explique a queda abrupta de sua popularidade. A fé no mito parece estar ruindo diante do aprofundamento das desigualdades sociais do país.
A outra chave, e que talvez explique melhor o fenômeno das multidões que foram às ruas nesse último dia 15, seria uma vontade de lutar, em alguns setores da sociedade, que também mobilizou milhões sob a consigna do #eleNão. Vontade essa que seria fruto da insatisfação e do medo com a ascensão de uma nova direita, rearticulada, e do retorno de velhos discursos conservadores e preconceituosos, somados à perda de direitos iminente. A campanha pelo “vira votos” representaria, nesse sentido, muito menos uma adesão ao projeto encabeçado por Fernando Haddad, e muito mais o caminho encontrado para tentar barrar o avanço da direita.
Passadas as eleições, essas milhares de pessoas teriam se visto órfãs, carentes de mecanismos políticos pelos quais dar vazão ao seu descontentamento . E é por aí também que entra o cálculo da oposição institucional, que joga todas as fichas no desgaste do governo Bolsonaro, refreando a disposição para a luta que esses setores populares demonstram pelo menos desde outubro de 2018. A alça de mira reformista está sempre nas eleições de 2022. E, por isso mesmo, parece ganhar mais força o risco de uma reconversão (à força) das pautas contra a Reforma da Previdência e pela Educação ao Lula Livre (conscientemente como tática de esvaziamento e apassivamento da mobilização popular).
O que não entra no frio cálculo dos reformistas é que o povo não pode esperar mais quatro anos para, talvez, quem sabe, enxergar uma luz no fim do túnel. A carestia de vida avança a galope, o desemprego só faz aumentar e, antes das pretensões eleitorais dos partidos de oposição se confirmarem (se é que se confirmam), os serviços públicos e direitos conquistados terão sido liquidados. As demandas dos e das de baixo não cabem nas agendas eleitoreiras (nunca couberam), e esse 15M é um claro sinal da disposição do povo em protagonizar a luta contra os ataques que vem desde cima.
E é aí que entra a atuação dos veículos de mídia independente – entre eles, o Repórter Popular. Dar voz àqueles e àquelas que quase nunca são ouvidos, conectar as lutas que acontecem em diferentes lugares sob uma mesma demanda, unir lutadoras e lutadores sociais em uma mesma narrativa, enfim, dar elementos de coalizão a um movimento popular múltiplo e geograficamente disperso. Garantir que as urgências das e dos de baixo não sejam cooptadas pelos interesses das elites, tampouco caladas pelo pragmatismo eleitoral reformista.
E foi isso que fizemos nesse 15M. Com uma cobertura que alcançou dez estados e 34 munícipios (cerca de 17% do total de cidades que tiveram manifestações), o Repórter Popular atuou no sentido de registrar o maior número possível de atividades realizadas no marco da luta em defesa da Educação e contra a Reforma da Previdência. Como lutadoras e lutadores que comunicam, mas também como comunicadoras e comunicadores que lutam, estivemos ombro a ombro nas ruas nessa última quarta-feira, contribuindo para a construção de uma narrativa de lutas de proporções nacionais. Relançado em um dia nacional de lutas (Greve Geral de 30/6/2017), o Repórter Popular reafirma sua vocação para instrumento de difusão das lutas que se fazem desde baixo, abrindo espaço para que todas e todos os oprimidos possam ecoar seu grito por um mundo mais justo e menos desigual.
Que as vozes do povo em luta se façam ouvir!