Por Érico Oliveira
Professores, estudantes, advogados, lideranças indígenas, representações sindicais, da população apoiadora, ambientalistas, famílias reunidas em frente ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, ouvimos a música de povos ombreando, circundando e encontrando gerações, aconselharem, fazerem memória, relatarem, e até desabafar sobre alguma condição sabidamente brasileira e internacional, social e indígena, que atravessa gerações. A pouco houve família M´biá Guarani, em antiga fazenda à orla do Guaíba taxada até como depredadora do meio ambiente, enquanto é ameaçada de morte por quem gasta muitas balas para isso. Aliás gente trabalhando ao lado, suspeitosamente alega não ter ouvido nada. Haverá mais impunidade? Até quando?
Poluição ambiental e política tóxica
Indígenas sonham, mudam, coletam, caçam, e ainda assim a demarcação de seus territórios é o maior, senão único indicador de estancarmos um desmatamento desenfreado, e bem conhecido pelos seus efeitos através da Floresta Amazônica – cuja transpiração das árvores na floresta coloca em circulação mais água que o rio Amazonas, mas em forma de vapor e só tardiamente notada, quando falta em tantas torneiras de uma capital de estado como São Paulo, demonstrando os estragos de uma política que opera como se transposições gigantescas, feito um à bacia hidrográfica de Paraíba do Sul, remediassem seus estragos – ou os de apenas dois anos mais secos (2013/2014) depois de uma super-abundância de águas. No Rio Grande do Sul, cujas fronteiras deram passagem às produções transgênicas, então proibidas por redundar em verdadeiras intervenções direto na Natureza – mas com efeitos ainda desconhecidos na Saúde – a desertificação é um processo que vem sendo alertado de longa data, beneficiado com outros incidentes envolvendo políticas abafando laudos técnicos (como no caso da própria então governadora pelo PMDB Yeda Crusius).
Se a moda pega?
A situação é ainda mais grave e descontrolada: os grupos lobistas que os telejornais dos anos 80 nos instruíam serem normais de uma democracia moderna já não são grupos trocando ideia com representantes legislativos do povo, pois elegeram seus próprios agentes diretos nos Congressos, angariando mais e mais recursos, formando bancadas, negociando e angariando mais recursos, ou mesmo isentando sonegadores aliados e até lavando-e-levando dinheiro como por Aécio “malas-de-dinheiro-
Caminhada elabora apelo e esboça reações
O grande encontro foi portanto menor que sua importância e preparação, ou que a relevância de sua procissão entre INCRA e MP Federal, passando pelo TRF4 com denúncias e conclamação, mas finalmente se escuta, e desde uma consciência aguda de onde estamos – do que alguns intelectuais chamariam de “ponto a que chegamos”: que antes chegávamos juntos para conferir, saindo… para despertar e fortalecer, neste momento de abalos, em que se chama à potência da solidariedade popular, à confecção de cartazes e abertura de faixas que vem se transformando em boas mateadas e elaborações da demanda por entendimento da Vida e do papel da FUNAI.
Uma história de disputas políticas
Como em retribuição a importante apoio eleitoral, o presidente usa de seu estilo militar para mais que bater continência a bandeira e agente estadunidense e acusar quem advogue pela simples entrega de territórios à responsabilidade indígena de não agirem “como brasileiros”. Como se brasileiros fossem desmemoriados ou só quisessem lembrar do Projeto de Emenda Constitucional 215 nalgum vestibular.
O PEC 215 visa transformar as demarcações de Terras Indígenas, a titulação das Áreas Quilombolas, bem como as Unidades de Conservação Ambiental, uma responsabilidade exclusiva do Congresso Nacional – depois de tramitar pelos quinze primeiros anos 2000, reaparecendo com força a partir de 2013 e sendo denunciado pela maioria dos Senadores como inconstitucional em 2015. A ideia da bancada ruralista era que só projetos-lei pudessem aprovar demarcação de terras indígenas. Justificavam simplesmente acusando o Executivo de não respeitar a propriedade dos agricultores no processo gestor das terras, e prometiam priorizar tramitação de matéria a cada vez que chegasse ao Congresso. Teve representante desta bancada chegando a negar, em cadeia nacional de TV, que a PEC215 incidisse sobre o Direito indígena, alegando tratar-se apenas de uma “segurança jurídica” para todos os envolvidos – mas a maioria dos senadores entendeu tratar-se de um equívoco político e jurídico, em todo caso inconstitucional.
Vulnerabilização e conflitos
Foram anos para lá de tensos entre defensores de Direitos Humanos e povos indígenas – amadores, “identitários”, estudantes, cidadãos e profissionais – denunciando práticas de genocídio e seu possível favorecimento legal por quem deslegitima a demarcação e ratificação de terras prevista na Constituição enquanto responsabilidade executiva da União. Os senadores assinaram o repúdio àquele “Projeto de emenda 215” cinco meses antes dele ser votado pela Câmara dos Deputados em 2015, por força de bancada ruralista. Na TV globo o comentário de Chico Pinheiro, ao final da matéria sobre essa parte das aprovações que seriam necessárias, naquela Câmara dos Deputados vedada à participação indígena, já resumia: “Agora só falta entregar os índios à bancada da bala, né Giuliana?” (Morrone).
Com o repúdio dos senadores, a operação poderia parecer afastada, mas não é assim que se tem conduzido os agentes políticos de fronteiras agrárias em terras brasileiras, em favor do território popular ou patrimônio ambiental. Indígenas e suas lideranças o sabem, e não estão sozinhos. O próprio procurador do Ministério Público que recebeu as representações dos pedidos dos povos originários e do Quilombo Machado no último dia 16, Pedro Nicolau Moura Sacco, também compreende a decisão presidencial como claramente sinalizadora de uma intenção de não cumprir o dever que está escrito na Constituição Federal, como tanto se tem falhado em cumprir outros tratados internacionais como a convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho determina neste artigo que os povos indígenas sejam ouvidos – o que vem sendo desrespeitado em todo aquele processo de formulação de políticas que envolvem os índios), assim como em relação aos territórios quilombolas (a mesma MP 870 aqui contestada “transfere” a responsabilidade pela regularização das terras quilombolas do Incra, mas sem indicar onde se ficaria responsável pela função).
Por que tirar as atribuições do Ministério da Justiça?
O Ministério da Justiça é uma instância preparada para tarefa tão importante quanto complexa que é a mediação de conflitos fundiários e barragem do extermínio de povos indígenas. Por que desmembrar a FUNAI entre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento-MAPA (chefiado pela empresária deputada pelo Mato Grosso do Sul e chefe da bancada ruralista Tereza Cristina – que foi Secretária do Desenvolvimento Agrário daquele Estado em gestão que, segundo depoimento de irmãos Wesley e Joesley Batista, recebeu propinas da JBS, e se elegeu com verbas como da controladora da JBS, a quem ela ainda deve milhões por outros negócios) e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (sob o atual comando da advogada e pastora Damares Alves), afinal? Essa é a grande, natural questão, desde que algo semelhante foi aventado por Onix Lorenzoni já em início de dezembro, imediatamente suscitando clamores dos povos indígenas sobre essa questão de terra – a mais comum, didática e política, entre tamanha diversidade cultural. Uma resposta que parece tão rápida quanto língua de palhaço, ainda que obviolulante, é a declarada indisposição em demarcar território a esses, e negros, povos. Há luta para não se perder o que há de direitos fundamentais, mas também há o equívoco persistente e tão denunciado pelo Senado brasileiro, e pelos especialistas da Funai, mas que persiste, retorna e/ou cresce a pontos intoleráveis. Que fazer?
São questões que precisamos responder, se queremos entender melhor o que está acontecendo nos domínios dos direitos e de nossa Sociedade – de todos nós e das gerações futuras. O presidente Jair Messias declara um tratamento humano de integração do índio à sociedade como Política livre de uma superproteção de ONGs, socialistas e esquerdistas, mas ao invés de trabalhar construtivamente neste sentido desloca atribuições de uma (já reduzida a níveis micro) FUNAI, que não podia deixar de se posicionar no processo da PEC215 (como de fato se posicionou, alertando a toda a sociedade para o ataque a direitos constitucionais que aquela emenda viabilizaria, inclusive pela redução de direitos individuais – submetendo os territórios à especulação sobre arrendamentos, bem como à construção de imóveis para o poder público, rodovias e ferrovias).
Um pouco mais de Política e de Lei
Embora o atual presidente tenha sido eleito pela sociedade não tolerar a perpetuação no poder daqueles a quem atribui responsabilidades por sua vulnerabilização, uma grande escola sua foi a Câmara dos Deputados, em que trabalhou por tanto tempo (e deu emprego aos filhos), de onde sempre participou de “campo” formando alianças, não raro votando junto ao PT e como um estadista. Agora suas declarações e medidas, como chefe de Estado, tem outras consequências: no mínimo ignoram o papel da FUNAI, ao deslocá-la para a pasta ministerial da agricultura e, assim, recolocar na institucionalidade uma relação de forças recusada como impertinente pelo Senado, em 2015, por afrontar outros poderes e à Constituição Federal. O artigo 231 da Carta Magna afirma reconhecimento “da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”, deixando à sociedade e à FUNAI tarefa em muito superadora da lógica de tutela, integração e assimilação cultural – sem soltar “a mão de ninguém”. A FUNAI alertou que retirar a tarefa do executivo e submeter a definição sobre o território “dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” ao Congresso Nacional lesaria nossos direitos nele em favor de maiorias políticas de ocasião, simplesmente em nome de índices desenvolvimentistas projetados sobre populações indígenas, e da retórica de inserção na sociedade nacional que ele, J. M. Bolsonaro, tão direta e “curiosamente”, ainda vocaliza.
O que está acontecendo seria interessantíssimo, nos lembra Eliane Brum, não fosse desvastador, ou talvez se fôssemos de outro planeta: as questões ambientais, tratadas como planos de conspirações globalistas, em discursos que parecem realmente delirantes – mesmo para professores acostumados, como para comunidades científicas e internacionais – não qualificam perspectiva de trabalho, quanto mais da organização política de seu desenvolvimento ou de reais modos de convívio entre as diversidades.
Haverá alguns setores a que mais se endereçavam as palavras do cacique Arnildo sobre as dificuldades de ser liderança – consequentemente sobre assumir responsabilidades práticas, pelo cultivo de relações e saberes??? Quer dizer, mesmo colocando-se como membro de comunidade que não compreende o papel de muitas instituições responsáveis por seus direitos, afirmava a dignidade da sua própria vida e a noção dela estar sendo prejudicada por gente que não só não é nacionalista, como nem passa as férias em território nacional. (A quem eles acham que estão enganando? A quem emite e promove opiniões lastreadas na crença de que a Constituição permite o roubo das propriedades?) São várias as questões que ficam sendo respondidas por quem as conduz, enquanto outras se levantam, em abordagem que escutamos ao ouvirmos povos originários. Não é grego nem ciência de foguetes, mas organização a partir de território – de terra mesmo, como valor estruturante, indenizável a agricultores, mas contrastando com os circuitos especulativos e financistas que tanto se tem afirmado como chanceladores de “governabilidade” no Brasil (apesar das graves crises nos próprios países imperiais sugerirem as coisas não serem bem assim mesmo!).
Situações de realidade forjando representações
Num ato confirmamos e socializamos muito do que já é portanto (re)conhecimento de quem atende aos convites para participar dele, por um lugar de fala construído ao longo de muitas gerações e/ou vozes que diz de – e se traduz em – culturalidade nossa, e no entendimento expressivo de novas e futuras gerações. O apelo para que também contemplemos seriamente, como lideranças e/ou educadores, à importância das tentativas mais insistentes/reincidentes deste governo é portanto uma lição de compostura, dignidade, e até de cidadania – especialmente se esta for tomada como bem mais que volta e meia transferir politicamente sua responsabilidade decisória a outros retóricos profissionais (em todo o caso notavelmente mais compatível com a “Constituição Cidadã” de 88, mesmo quando enormemente mudada e ampliada através de emendas).
Em tão tensionada condição de batalhar a vida, e no desabafo, a liderança indígena com quem caminhamos sustenta a atitude preocupada com o conjunto das humanidades no mundo da vida, e dos seus setores menos resistentes – dentre os próprios brancos que, desorientados, podem mesmo encontrar umas lideranças mais ilusórias que outras, como movido por esperança de falas mais diretas de quem assuma suas mais plenas responsabilidades, mesmo que considere impossível, até por definição, a setor privado ser corruptor e corrupto, ou agente promotor de extermínios, de anomalias e colapsos ambientais.
A representação de estética indígena pode ser subsistência e foclore mais ou menos urbanizados, mas é mais comum que elabore os valores de equilíbrio climático e manutenção dos mananciais de água, entre outros serviços ambientais essenciais tanto à nação como aos biomas, do que aquelas representações que a ignorem. O ato de terça passada também marca o encontro ético e político de povos em suas trajetórias de resistência e apoio mútuo.