Da nouvelle vague japonesa – movimento de cinema que começa na França na década de 60 pautando uma nova forma de fazer cinema, rejeitando a abordagem realista dos anos anteriores – A Mulher Inseto (1963) é certamente um ponto alto no cinema oriental. Inovador na forma do filme e tematizando assuntos tabus como o incesto ou sempre rentáveis ao debate como a opressão capitalista, o longa de Imamura, nome importante no cinema japonês, mantém o telespectador incomodado durante as pouco mais de duas horas de projeção.
Essas inquietudes vêm dos dois planos ditos acima, a forma (maneira como são mostradas as imagens e como se encaixam entre si) e os temas, ou conteúdo do filme (o enredo, do que trata, etc.). Em relação à primeira, o diretor abre o filme já provocando o espectador, acostumado a abordagens mais convencionais (mas não por isso menos interessantes, como o clássico Era uma vez em Tóquio), ao acompanhar em dois ou três planos um inseto caminhando sobre a terra. Deboche típico da nouvelle vague – ao menos da francesa e da brasileira – é um indício da crítica traçada pelo filme: o eterno retorno do inseto ao subir um morro de terra e nunca chegar ao seu topo – já que imagem trava propositalmente no momento final da subida – é a metáfora para a circularidade da violência contra as e os de baixo pelo sistema capitalista e também da violência de gênero a qual as mulheres, neste caso as que são obrigadas a se prostituir, estão submetidas.
Pela forma, além de planos escuros comuns àquele tipo de cinema (e que se relaciona com o expressionismo alemão e com as fotografias de muitos filmes de Ingmar Bergman e Andrei Tarkovski), o filme tem como peculiaridade um recurso usado um ano antes por Chris Marker em La Jetée [em português A pista ou A plataforma]: a montagem como de fotonovela. Em A pista, Marker filma muito pouco, a grande extensão do filme é feita somente de fotos com narração em cima. Imamura se vale desse recurso, mas o utiliza só em momentos oportunos, em geral em cenas que representam passagens de tempo. Marca, além disso, os momentos catárticos (momentos antes de a cena ter seu ápice, resolvendo determinado problema ou sinalizando um desfecho momentâneo). Isso dá um caráter de mobilidade impressionante ao filme já que motiva o telespectador a imaginar tal desfecho. Outra coisa: ao fazer isso, o diretor não se acomoda e indica uma não resolução do problema, mostrando que os problemas da vida real também seguem lá, sem reparo. Relembrando, os problemas dos quais o filme trata passam do incesto que a protagonista sofre desde pequena à opressão geral da sociedade capitalista representada pela prostituição.
O longa se relaciona também com o clássico livro de Franz Kafka, A Metamorfose, no qual o protagonista Gregor Samsa acorda e se vê transformado em um inseto gigante. Aqui a metáfora é também com a condição socioeconômica da personagem. O filme de Imamura coloca uma tensão a mais por se tratar de uma mulher, direcionando então a crítica também para os problemas estruturais de uma sociedade patriarcal.
Imamura e seus filmes foram um marco no cinema japonês e também mundial. Inventivo e corajoso, criou obras de grande impacto e que seguem comunicando sua crítica com força até os dias de hoje.
Rodrigo Mendes