No final de semana passado, dias 12, 13 e 14 de outubro, aconteceu na quadra de samba da Imperatriz Dona Leopoldina, bairro Rubem Berta, em Porto Alegre, o Encontro Literário nas Periferias (ELIPA). Foram diversas as programações, inclusive voltada para as crianças no primeiro dia; no final de semana ocorreram as mesas e debates literários junto a eventos culturais-artísticos, como o Sambarau no sábado, e no domingo a final regional de SLAM e uma sequência de show de encerramento.
Os vários debates giraram em torno das tensões que envolvem a dinâmica de periferia-centro; do papel do negro na literatura; da função emancipatória da literatura; da importância de fomentar um sistema literário negro. A mesa de abertura foi com o convidado Hamilton Borges Walê, com o título “Nem as margens, nem periferias: somos o centro do problema”. À tarde, o debate “Literatura Negro-Brasileira: usos e sentidos” contou com a presença do poeta Akins Kinté e da editora Figura de Linguagem.
(O conceito de sistema literário é do crítico literário Antonio Candido, que o formulou em seu livro Formação da Literatura Brasileira. Para o crítico, existe literatura quando ela se comporta como um sistema, que é composto por três partes interdependentes: um autor, uma obra (poesias, romances, etc.) e um público. É preciso que alguém escreva algo e que haja pessoas que leiam isto para haver literatura.)
O pressuposto da conversa é que há um apagamento da literatura negra brasileira através do racismo estrutural da nossa sociedade. Cada escritor/a negro/a que escreve, publica e é lido, resiste a uma força história de apagamento de sua voz também na literatura. A estrutura social brasileira perpetua seus racismos também na sua história literária, fazendo com que as manifestações literárias quando algum/a negro/a publica possam ser entendidas como uma forma de quilombismo – que, para Abdias do Nascimento “é um movimento político dos negros brasileiros (…) quilombismo não significa escravo fugido. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial”. Um sistema de solidariedade e comunhão existencial através do campo simbólico da literatura para enfrentar os problemas materiais do racismo estruturante.
A editora Figura de Linguagem e o poeta Kinté são bons exemplos disso: nascem pela necessidade de fortalecer um sistema literário negro – publicação da literatura negra, que é contra-hegemônica e busca modificações reais na sociedade. Um exemplo que a editora demonstra é a sua modificação do catálogo. Mexendo nos nomes de quem é publicado, interfere no que será lido, propiciando assim uma visão mais ampla da literatura brasileira. Outro exemplo é a marcação como brancos quando estes são publicados pela Figura de Linguagem, invertendo a lógica de que só os negros são marcados quando são publicados. É seu objetivo recuperar o que foi deixado de lado quando se contou a história da literatura brasileira. Exemplo muito bom é o romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (1859), primeiro romance abolicionista da literatura brasileira e invisível até recentemente, quando houve esforço para trazê-lo de volta à cena literária. Hoje o romance é leitura obrigatória de vestibular, o que o ajuda na sua disseminação e integração ao sistema literário negro-brasileiro.
A literatura negra promove uma mudança do ângulo narrativo, do ponto de vista. Essa é uma das razões pelas quais tem dificultada a circulação e leitura de suas obras. Outro ponto chave é o desenvolvimento desigual e racista da sociedade brasileira, que é um problema material e influencia diretamente o lado simbólico da questão, que é a literatura negra; a falta de dinheiro no mundo real da maioria dos negros serve de obstáculo para que o mundo simbólico negro, ou seja, sua literatura, seu sistema literário, seja conhecida. A falta de dinheiro ocasiona a dificuldade de difusão, então a leitura e o conhecimento desse vasto mundo literário ficam restritos a poucos, o que gera uma perpetuação do cânone literário brasileiro, que é branco, racista e excludente. Nada mais é do que a transferência dos racismos sociais para a história da literatura brasileira.
Ao final do debate, Walê questionou como a editora se posiciona em relação ao mercado editorial. A Figura de Linguagem se entende como rompimento em relação ao mercado e à literatura branca nacional. Rompe e tensiona a estrutura do sistema, sem vontade de integração, mas com horizonte revolucionário de mudança da lógica literária e social excludente. O ELIPA injeta muita força para o fortalecimento do sistema literário negro-brasileiro, lutando incessantemente contra o racismo em todos os seus âmbitos.