Os EUA e a vigilância eletrônica global – espionagem como vantagem estratégica

30 de agosto de 2017 – Bruno Lima Rocha

Edward Snowden, ainda hoje asilado na Rússia governada por Vladimir Putin e demais herdeiros da KGB, é um ex-consultor da National Security Agency (NSA), agência dos EUA especializada em vigilância e guerra eletrônica e responsável pelo monitoramento de dados eletrônicos e comunicação interpessoal. Em declarações públicas, se disse arrependido de seus atos, vindo a desertar. A crise de consciência de Snowden, somado ao esforço de jornalistas capitaneados pelo periódico inglês The Guardian, propiciou ao mundo o conhecimento das capacidades da Superpotência no ato de vigilância global em tempo real de praticamente todas as conexões cibernéticas e linguagens de sinais do planeta. A inteligência de sinais – sigint na sigla em inglês – coordenada pela NSA (também denominado de CSS, Serviço Central de Segurança na sigla em inglês) – abarca a capacidade de interceptação das comunicações eletrônicas e recebe um orçamento anual maior do que o Departamento de Comércio dos EUA. A NSA/CSS é a maior rubrica orçamentária de um total de investimentos de Usd 70.7 bilhões de dólares (ver https://fas.org/irp/budget/).

Reforçou a denúncia de Snowden o filme produzido sobre sua vida e saga (Snowden, Oliver Stone, 2016, ver trailer em encurtador.com.br/owxF9). O argumento da deserção faz sentido. Espionar cidadãos comuns é muito distante de exercer o alerta sobre possíveis conexões do terror integrista sunita. Na prática diária, é quase impossível distinguir entre a atenção para a segurança do Estado, e a intromissão na vida privada e o emprego da espionagem como forma de exercer vantagem estratégica para concorrência econômica, brecando as possibilidades de crescimento da Semiperiferia. A novidade de Snowden é a deserção e não a espionagem sobre populações inteiras.

A partir da vitória dos EUA, seus aliados anglo-saxões e a OTAN na Guerra Fria, a vigilância individual já vinha aumentando, considerando que os ex-aliados na luta do Afeganistão sob a invasão soviética, se torna a razão de Estado e o bode expiatório perfeito como ameaça planetária. A ênfase no rastreio da lavagem de dinheiro, tomando o caso limite do BCCI (ver encurtador.com.br/egis2) – banco paquistanês fundado em 1972 – e observando seu emprego no apoio dos integristas, a Superpotência globalizou a vigilância sobre transferência de ativos financeiros, executando de forma discricionária a punição. Mais uma vez, a humanidade se vê diante de um engodo. Alegando a “segurança coletiva” uma vez que o potencial inimigo se organiza em sistema de rede, a NSA/CSS vigia a tudo e a todos de forma integrada, ultrapassando a necessidade de esperar um decreto legal de tipo FISA (ver encurtador.com.br/pLXZ5 )  , sendo derrubada esta exigência após o Ato Patriótico de 2001 (encurtador.com.br/cglJ5).

Cabe recordar que o modelo organizacional foi aprendido pelos jihadistas quando o membro da família real saudita e sócio dos Bush, Osama Bin Laden, era operador de enlace no recrutamento de voluntários “afeganis” para lutar contra os hereges soviéticos ocupando o Afeganistão. Tais operações eram alimentadas pelo BCCI e redes de shadow banking informais, como de transferência financeira comutada, típica forma de envio de dinheiro por comunidades de imigrantes, conhecido como Sistema Hawala (ver encurtador.com.br/ikTWZ). Esta guerra não declarada foi a maior escalada bélica (de custos) do período da bipolaridade e azeitou a máquina da lavagem em escala planetária. Ao comprometer a Arábia Saudita como co-financiadora da resistência afegã, as redes de inteligência se mesclaram, para depois ficarem disseminadas pelas populações de credo islâmico de ramo sunita espalhadas pelo mundo. O resultado é vigiar quase tudo e quase todos, justificada na onipresença sobre o inimigo sem rosto. Por tabela, alegando a defesa da sociedade e da segurança coletiva, os EUA literalmente quebram comunicações de sinais e decodificam conversações em tempo real (ver https://nsa.gov1.info/surveillance/), servindo tais esforços para detectar quaisquer ameaças, incluindo concorrência econômica ou ações discricionárias.

Como se sabe nada disso é novidade. A partir da escalada bélica da 2ª Guerra Mundial, os Estados Unidos são co-governados pelo complexo industrial-militar, incluindo os setores de telecomunicações. O alvo da vigilância é indiscriminado, conseqüência da indexação de palavras-chave, cujos registros, uma vez capturados, são posicionados em super processadores, cruzando os termos com as relações interpessoais de quem participa das conversas. A quebra de sinais também pode operar entrando nos dados de comutações bancárias, rastreando transferências e circulação de ativos pelo Sistema Swift (ver encurtador.com.br/sDZ48). O problema internacional é a vigilância das comunicações eletrônicas em Estados soberanos, espionando sistematicamente cidadãos de países aliados – como os da União Européia – e parceiros comerciais, a exemplo do Brasil.

O fluxo de comunicações eletrônicas passa necessariamente pelos EUA, pois lá se localiza a maioria dos supercomputadores servindo como intermediários das conversações de internet e o hub da rede física instalada nas duas costas do Oceano Atlântico. Some-se a isso a lealdade de fato – não jurídica – das empresas fornecedoras de serviços de internet e indexação de dados, como Google, Facebook, Microsoft (no serviço do Skype) e Yahoo. Se antes os críticos suspeitavam da venda de dados particulares para fins de mercado, individualizando o consumo e a oferta de produtos customizados, agora o fato é ainda mais grave. Ao contrário do senso comum do liberalismo, a privacidade e a liberdade individual não está assegurada para os cidadãos, sendo prerrogativa do uso da força e hegemonia do Império em escala mundial.

Espionagem, a vantagem não negociável

Pela primeira vez após o 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos da América (EUA) se encontram emparedados diante do ocidente, para operar como guardião desta forma de vida contra os “sarracenos”. O Império é detentor de uma superioridade militar infinita diante de aliados e possíveis concorrentes. Tamanho é o complexo industrial-militar-eletrônico que bastam poucas deserções para expor tal gigantismo e suas debilidades.

A partir da deserção de Edward Snowden, um analista de informática e decodificador terceirizado da National Security Agency (NSA), ficou descortinado para a opinião pública o senso comum entre os especialistas. Para quem entende minimamente de espionagem e realismo das Relações Internacionais (RIs), sabe que a superioridade da superpotência vitoriosa na Guerra Fria é quase absoluta em termos de vigilância eletrônica. O que houve,  com Snowden, antes com Bradley Manning (analista de inteligência do Exército dos EUA que operara no Iraque e Afeganistão), Valerie Plame (agente da CIA, especializada em armas de destruição em massa e que fora exposta ao público no governo Bush Jr.), é parte do jogo. Como diria Graham Greene, o chamado fator humano, por vezes o limite das convicções ou os conflitos internos de cada operador, podem gerar a motivação discordante, gerando a dissidência.

A diferença da situação do atual desertor Snowden para os anteriores, Plame e Manning, é abissal. Bradley está preso por haver vazado mais de 700.000 documentos secretos para o portal Wikileaks, coordenado pelo australiano Julian Assange, outro inimigo do Império em tempos de internet. Plame circula com desenvoltura nos EUA, virou enredo e argumento de um bom filme feito por Hollywwod e hoje é fonte permanente de meios de comunicação como CNN ou programas de humor político como o do democrata Bill Maher (HBO). Edward está numa condição especial, exilado na Rússia com renovadas pretensões imperiais, empregado de um portal de relacionamentos dentro do território soberano do czar Vladimir Putin e vazando sistematicamente relatórios de inteligência para o jornal britânico The Guardian.

No segundo semestre de 2013, o mundo foi informado e os especialistas constataram o grampo no celular da primeira ministra alemã Ângela Merkel; escutas na reunião secreta do Conclave do Vaticano; aberturas dos emails privados da então presidente brasileira Dilma Rousseff, dentre outras violações. A alegação é a insegurança global diante das redes integristas sunitas – as mesmas retroalimentadas pela Arábia Saudita, aliada dos EUA desde 1945 – mas as razões são outras.

A primeira é que o gigante tem fome, acumulando dados e conversas e os classifica segundo a prioridade da política externa do Império, seja esta comercial ou bélica. A segunda razão é o fator antecipação. Os Estados Unidos têm como vantagem estratégica em qualquer âmbito das RIs o poder de antecipar-se aos demais agentes, não importando sua grandeza ou área de interesses. Para a Casa Branca, tal vantagem é inegociável, em todos os âmbitos da projeção de poder e vantagem estratégica, com especial ênfase na aliança com o aparelho Jurídico dos países da Semiperiferia e sua sanha – compreensível e até certo ponto justa – de punir o crime de elite. O resultado nefasto desta cruzada moralista, todos nós conhecemos.

 

Bruno Lima Rocha é professor de relações internacionais e de ciência política (www.estrategiaeanalise.com.br para textos e coluna de áudio / (https://estrategiaeanaliseblog.com para audiovisual e longas entrevistas ou programas de rádio / blimarocha@gmail.com para E-mail e Facebook)