ESPECIAL 8M: MULHERES RESISTEM! – Queimem as bruxas! Ideologia de gênero e a guerra contra as mulheres

A cruzada teológica e conservadora contra as mulheres. Fonte da imagem: http://biblioo.info/queimem-as-bruxas/

Nesse mês de Março, nós do Repórter Popular estamos organizando uma série de publicações sobre a questão das mulheres. O segundo tema da série aborda a famosa “ideologia de gênero”, um dos principais motes da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro. Além deste tema e e da violência obstétrica (abordada em nosso primeiro texto), também vamos trazer reflexões sobre outras questões relacionadas a saúde da mulher, como amamentação, ao feminicídio, entre outros temas.

Queimem as bruxas! Ideologia de gênero e a guerra contra as mulheres

O recém empossado “presidente”, seus conchavos políticos com forte influência de lideranças evangélicas e seus seguidores travam atualmente uma guerra antipovo, mas especialmente contra os movimentos de mulheres e LGBT+. Essa guerra ocorre em forma de ataque à políticas de saúde, cultura, educação e direitos humanos, justificada no combate ao que chamam de “ideologia de gênero”. Em tempos de autoverdade, o óbvio deixa de ser óbvio. Aí é preciso assuntar nos começos. Vamos aos fatos.

Gênero: que história é essa?

Gênero é um conceito, uma ferramenta de análise da realidade social. É uma formulação que aparece nos anos 1960, mas que ganha força nos anos 1980 por contribuição de autoras feministas.

Todas as sociedades do mundo percebem uma diferença entre as pessoas na sua anatomia reprodutiva ou sexual. Apesar da diversidade cultural, as sociedades instauram através de ritos, restrições, prescrições e regras de casamento UMA DIFERENÇA, GERALMENTE HIERÁRQUICA, entre as pessoas a partir de seu sexo biológico. A partir da característica física se constrói então um gênero (feminino) que é imposto para a fêmea se tornar uma mulher social e um gênero (masculino) imposto para o macho se tornar um homem social. Essa diferença passa a ser um meio discursivo para regular papéis sociais que vão desde o lugar das pessoas na família, no trabalho, comportamentos e até a regulação da sexualidade (o padrão heterossexual como norma).

Apesar da diferença biológica que implica em consequências sociais (como a menstruação, a gravidez), não há nenhuma razão para o estabelecimento de relações desiguais, de dominação. Gênero é então uma categoria para pensar como elaboramos valores sociais que estabelecem a diferença do que é ser homem ou mulher. Mais do que tudo, é um conceito fluido que nos ajuda a pensar como as relações sociais nos atravessam ao longo do tempo, identificar como construímos a relação de dominação em que o homem é a norma e mulher é o outro. Nos anos 1990, a partir de reflexões sobre experiências de gênero, travestilidade e transexualidade, bem como por influência de pautas dos movimentos de mulheres e LGBT+, tomam corpo elaborações que dão conta de questionar discursos essencialistas de masculino e feminino e passam a refletir sobre sujeitos não binários e outras formas fluidas de viver as identidades de gênero e orientações afetivo-sexuais. Não é preciso dizer o estranhamento que provocam essas possibilidades em um mundo sustentado pelo masculino heterossexual ligado ao biológico como norma.

A diferença de gênero se manifesta principalmente na divisão sexual do trabalho e na organização social do trabalho de reprodução e cuidado. Ou seja, nas justificativas que os homens inventaram para ganharem salários melhores que as mulheres, não realizarem trabalhos de criação dos filhos e tarefas domésticas, nos imporem a maternidade como regra, imporem aos nossos corpos padrões de beleza e regras de comportamento e nos submeterem a determinadas violências pelo fato de sermos mulheres. O que se manifesta nas características e atitudes físicas e psicológicas, ou no “menino veste azul e menina veste rosa”, são consequências dessa divisão. E também mecanismos de manutenção dessa divisão/hierarquia. Basear a opressão na biologia é uma forma de perpetuá-la, pois o argumento fica mais forte quando encaramos algo como natural, que não pode ser mudado.

“Ideologia de gênero”, a grande mentira

Graças ao pensamento e às lutas de muitas mulheres, começamos a modificar os papéis sociais que os homens nos impuseram ao longo dos séculos, exigindo direitos sociais, questionando as opressões que sentimos e as violências que vivemos diariamente. A estrutura do sistema em que vivemos, que é patriarcal, reage. Na política, no trabalho, em casa, na igreja. Inicia-se então uma  cruzada contra o gênero, uma guerra que é transnacional.

Uma parte da gestação desta guerra tem a Santa Sé como articuladora e se traduz na invenção da tal ideologia de gênero. Nos anos 1990, no contexto de encontros internacionais e de elaboração de documentos intergovernamentais para promoção dos direitos humanos, a igreja católica se organiza para impedir os avanços na promoção da igualdade de gênero. Desde então, o Vaticano atua fortemente no sentido de impedir avanços sobre revisão de leis punitivas do aborto, sobre educação sexual das meninas, sobre direitos sexuais das mulheres e, sobretudo, no debate sobre orientação afetivo-sexual e direitos das pessoas LGBT+. O Vaticano tenta associar o debate de igualdade de gênero, reprodução e sexualidade à pedofilia e outras perversões.

Atualizações da inquisição. Fonte da imagem: https://medium.com/revista-subjetiva/n%C3%A3o-podemos-falar-sobre-g%C3%AAnero-8bac3265fb3f

Essa articulação gestada nos espaços intergovernamentais é o início do investimento teológico contra o gênero, que vai tomar forma em anos subsequentes e com especial força dirigida à América Latina. Na AL, o processo social é bem mais complexo. Do ponto de vista da religião, temos de uma lado um legado forte do catolicismo colonial e de outro a enorme expansão evangélica dos últimos anos, que atualizam ataques dogmáticos contra gênero e sexualidade e pautam políticas de estado feitas por homens cada vez mais conservadores diante dos avanços conquistados pelas lutas nesses temas. Sem sombra de dúvida, uma reação aos acúmulos das feministas do sul global, que avançaram de forma inédita, por um lado desprendendo-se da influência dos estados e da igreja em relação às pautas importantes para a manutenção do sistema como família, reprodução, gênero e sexualidade, e, por outro, em direção a um feminismo anticapitalista, antirracista  e comunitário.

Ideologia de gênero é, portanto, um termo cunhado pelo Vaticano, mas que hoje serve de guarda-chuva para reunir diferentes grupos de interesse que lutam contra o avanço dos direitos sexuais e reprodutivos, visando a preservar uma estrutura de poder que tem o homem branco heterossexual no topo de todas as hierarquias sociais. O termo é a divergência entre o movimento feminista e os interesses religiosos e políticos, que associa a luta por igualdade no âmbito dos direitos humanos com perversões e crimes como pedofilia, no delírio de uma conspiração feminista global.

E o tal de kit gay?

Vivemos um processo de ascensão da extrema direita em diversos locais do planeta que tem ligação direta com as chamadas pautas morais. Alimentar esses sentimentos de xenofobia, sexismo, racismo, homofobia, preconceito com a pobreza, etc., contribui para mascarar o enorme crime financeiro de 2008 que beneficiou os bancos em detrimento de gigantescos sacrifícios sociais e econômicos. A guerra contra as pautas de igualdade de gênero, sexualidade, raça e etnia são uma forma de manter todas as estruturas de exploração e dominação no mundo, onde poucos têm muito e muitos não tem nada, e em que alguns corpos valem mais do que outros e se sentem no direito inclusive de aniquilar os “outros” corpos que valem menos. Cria-se um outro a ser combatido. Em que o casamento entre pessoas do mesmo sexo ameaça a vida de alguém? Em que a compreensão das mulheres como pessoas de direito ameaça? Na manutenção de um lugar de poder e no “direito” de ser violento.

Em 2011 surge a polêmica do tal kit gay, reacendida na última eleição. À época, o governo federal lançou o projeto Escola Sem Homofobia, uma campanha destinada às escolas que consistia em distribuir material de formação aos educadores para auxiliá-los a trabalhar com os temas de gênero e sexualidade nas escolas. Era uma medida importante de combate ao preconceito e para garantir o respeito à diversidade e promover garantias dos direitos das mulheres e da população LGBT+. É nesse momento que a bancada evangélica e políticos de extrema direita como Bolsonaro inventam a farsa do kit gay, dizendo que este projeto educativo na verdade queria sexualizar as crianças e estimular a promiscuidade. Diante da pressão conservadora, o então governo petista recua e retira o projeto. No contexto da última eleição, marcada por fraturas sociais e propagação de fake news, o kit gay é reelaborado na fantasia da mamadeira de piroca. Vídeos fake alardeavam que o governo teria distribuído nas creches públicas mamadeiras com bico em forma de pênis. Durante a visita de Judith Butler ao Brasil, uma horda de insanos perseguiu a filósofa, queimando um boneco seu numa réplica dos assassinatos cometidos pela igreja católica contra as mulheres durante a idade média. Um recado aterrorizante a todas e todos que lutam pela dignidade humana de sermos quem somos, pelos direitos das mulheres e LGBT+.

Ora, por mais absurdo que possam parecer, essas táticas de guerra de informação causam um enorme estrago. Deslegitimam as lutas feministas e LGBT+ e abrem caminho para mais violência e retirada dos nossos já escassos direitos. No caso da ideologia de gênero, os argumentos geralmente incluem dizer que as teorias de gênero pretendem desconhecer diferenças naturais, que as feministas e o movimento LGBT+ pretendem impor às crianças papéis de gênero e orientação sexual, que se trata de sexualização precoce e pedofilia, entre outros absurdos.

O pensamento feminista e categorias como gênero surgem para nos ajudar a desmontar essa invenção histórica de que as mulheres somos inferiores aos homens, o que se desdobra em múltiplas violências impostas aos nossos corpos. Gênero e sexualidade influenciam em vários aspectos da vida: renda, cotidiano no trabalho, saúde física e mental, direito à cidade, riscos de diferentes violências. O que defendemos é educação sexual integral, para que nossas crianças acessem informações sobre sexualidade adequadas a sua idade. Para que possam reconhecer quando estão em situações de abuso, para que adolescentes possam se prevenir de DST’s e de gravidezes precoces. Para que saibam que podem viver suas relações afetivo-sexuais com a liberdade de ser quem são, e que a heterossexualidade não é a norma correta, mas apenas uma forma de ser. Uma educação que combata os preconceitos e que promova a igualdade de gênero e respeito à diversidade.

Os que atacam os feminismos e os direitos da população LGBT+, mediante artifícios desonestos como a invenção dessas mentiras e campanhas difamatórias, na realidade trabalham para preservar ordens sociais e políticas violentas, antidemocráticas, verticalizadas, desiguais e avessas à pluralidade.

Quanto a nós, fica o desafio de construirmos espaços de resistência, fortalecermos os laços, nos solidarizarmos nas lutas e seguirmos semeando um mundo onde possamos viver juntos, livres e sem violências.

(Por S., feminista e militante da Resistência Popular Sindical)