Devemos evitar a expansão do vírus da EAD?

Maria Fernanda da Silva Viegas*

Antes da quarentena, os gestores da educação já estavam tentando propagandear a favor da educação à distância, com o intuito de economizar recursos. A primeira modalidade que está sendo abocanhada é a Educação de Jovens e Adultos, mas as demais também estão correndo perigo. Os profissionais da educação estão receosos quanto a esse interesse em ampliar a EAD. Durante a quarentena, estão tendo de produzir materiais para que os educandos, de todas as modalidades e etapas, façam atividades de casa. No entanto, esses professores querem deixar claro que isso só é aceito como exceção. É imprescindível que a educação básica seja presencial para ser de qualidade. Não tem como formar um cidadão à distância. Não tem como formar um profissional à distância. Não tem como formar um pesquisador à distância. Excepcionalmente, é óbvio que podemos propor temas de casa para fazer pela internet. Claro que para a educação continuada é interessante que haja oferta de cursos complementares em EAD ou semipresenciais. No entanto, para a educação básica, o básico é a presença.

ERROR

Fiz um curso EAD oferecido pela Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul. Me deparei com vários problemas da plataforma, vários caminhos para se perder entre os links e hiperlinks. Alguns cursantes não chegam lá, por falta de paciência, por falta de internet de qualidade, por falta de conhecimento, por falta de… Escola não deve ser lugar de falta! Escola deve ser lugar de presença! Não seria diferente se esse curso fosse voltado para os alunos. É preciso ter as condições adequadas para fazer um percurso que te guie e te desafie ao mesmo tempo. É preciso ter as condições para fazer um percurso seguro, não um percurso que te faça falhar já no início. No curso da Seduc, depois de conseguir achar o lugar de cadastro, de me cadastrar, de encontrar as atividades, o curso estava com um bug (uma falha) em que não aparecia os slides com o conteúdo, aparecia apenas as atividades avaliativas (atividades de marcar). Então, achei que o curso era aquilo e pulei a etapa de ler o conteúdo. Só depois é que voltou a aparecer a apresentação de slides… Enfim, bug atrás de bug. E assim começamos mal.

TOQUE NO OMBRO

Durante esta quarentena, estou fazendo um curso on-line sobre escrita criativa. Baita curso, por sinal. No entanto, quando quero tirar uma dúvida, não tenho a quem recorrer no momento da dúvida. A aprendizagem acontece primordialmente na dúvida. Quando a gente se questiona sobre algo, estamos processando, aprendendo. Ensino-aprendizagem é catarse, é insight, é clic. Na EAD perdemos a oportunidade de vários clics de momentos de “tiração” de dúvida. Alguns vão dizer “ah, mas vários cursos têm bate-papo com o professor instantaneamente”. A tiração de dúvida presencial tem o professor olhando o caderno, entendendo a dúvida, olhando no olho, colocando a mão no ombro. Aliás, muitas vezes os alunos só têm coragem de expor a dúvida após a mão no ombro. Muitos pesquisadores da educação apontam para a importância da afetividade para o aprender. A confiança aluno-professor exige aula presencial. Além disso, é importante pensar na inclusão de alunos com dificuldades de aprendizagem e deficiências diversas; é preciso a presença do professor, dos colegas e dos monitores para que a inclusão se efetive.

TROCA COM SEUS PARES

O ponto da socialização já está claro? Vivemos em sociedade, precisamos vivenciar ambientes coletivos desde a infância para aprender a conviver, compartilhar, ser solidário, ser empático. O ambiente escolar é espaço privilegiado para conhecer pessoas e estabelecer relações afetivas. Não podemos privar as pessoas disso. Afinal, há até quem diga que é impossível ser feliz sozinho. O ponto da socialização já é bastante difundido, mas, para além dele, quero ressaltar a importância da troca entre pares para a aprendizagem. Certa vez, estava explicando como ocorriam as mudanças linguísticas. Uma aluna pediu a palavra para compartilhar uma metáfora: as mudanças linguísticas aconteciam como uma grande brincadeira de telefone sem fio. Que lindeza! Em uma outra vez, estava eu explicando a diferença entre textos em primeira e terceira pessoa. Um aluno pediu a palavra e lembrou a todos que em muitos jogos virtuais há a possibilidade de jogar com a câmera em primeira pessoa ou a câmera em terceira pessoa. Tudo ficou mais claro para o nosso squad. É importante que a turma contribua simultaneamente com as explicações do professor. É importante que os colegas se ajudem e façam atividades em duplas e grupos maiores. Tenho convicção de que a riqueza da troca entre pares não se mantém em um fórum de EAD.

DEBATE

A produção científica sobre educação tem afastado a ideia de um ensino conteudista, de transmissão de conhecimento. Essa perspectiva é ultrapassada. Por outro lado, diversos estudos demonstram a importância de pensar a educação como interação social, como participação em práticas sociais, como experiência, como construção de conhecimento. Essa educação só é possível presencialmente. Só é possível fazer uma avaliação diagnóstica presencialmente. Só é possível construir projetos de interesse dos alunos presencialmente. Só é possível criar um ambiente democrático para a execução dos projetos presencialmente. Além disso, tem-se falado muito em formar cidadãos com pensamento crítico. Não existe pensamento crítico na solidão. O debate é o insumo do pensamento crítico. Nossas experiências de debate por Whatsapp e Facebook têm mostrado a agressividade estimulada pela distância dos interlocutores; o debate presencial é essencial para amenizar a polarização das discussões e ampliar a compreensão entre as pessoas.

INTERNET NA SALA DE AULA

A internet não substitui o professor. O professor não substitui a internet. Os dois são complementares. É óbvio que precisamos ter internet na escola. O uso da internet é ótimo para crianças e adolescentes, mas necessita de mediação, ao menos às vezes (muitas vezes, aliás). É preciso alguém para mostrar que a internet é mais do que redes sociais, youtubers idiotas, jogos violentos e pornografia. A internet é uma baita ferramenta de pesquisa, mas é preciso discutir com os alunos a necessidade de acessar diferentes fontes, de verificar informação, de avaliar as fontes. Às vezes os alunos não sabem nem que é necessário entrar no site que aparece no resultado da busca. Explico: às vezes os alunos digitam o seu tema de pesquisa no google e pegam a “resposta” apenas em títulos e em textos iniciais que aparecem na página dos resultados de busca. Deu pra entender a necessidade de orientação? Depois de orientados a entrar nos links do resultado de busca, eles precisam ser orientados a não copiar qualquer informação aleatória. É preciso ensinar a diferenciar o peso das informações. É preciso ensinar o que é plágio. É preciso ensinar a anotar as referências. É preciso ensinar que não dá para fazer um trabalho apenas acessando a Wikipédia. Além disso, é preciso estimular os alunos para os seus temas de pesquisa, é preciso que os temas de pesquisa estejam dentro de um projeto. Quando o professor leva sua turma para o laboratório de informática, há todo um planejamento anterior. Há conversa sobre a proposta e orientação sobre a execução da proposta antes de ir à informática. Após organizar os alunos nos computadores disponíveis, o professor não para mais de ir de aluno em aluno dando orientações sobre o uso das ferramentas e sobre o andamento do trabalho. Além disso, o professor precisa garantir que todos os alunos participem das atividades. Lembrem-se: na EAD não conseguimos saber quem realmente fez as avaliações. Essas orientações e cuidados são necessários no processo, não apenas após a finalização do trabalho, não apenas na hora da avaliação. O ponto é: ser contra a EAD não significa ser contra o uso de internet em sala de aula. De maneira alguma!

TIME MANAGEMENT

O termo veio do english e soa bonito, mas, como dizem meus alunos, não adianta falar bonito. Educandos precisam de tempos estabelecidos com orientação de tutores. Pr’os nego veio já é difícil organizar o tempo, imagina para os jovens que ainda são facilmente desconcentrados pelos encantamentos todos do mundo; imagina para os educandos que ainda têm dificuldade de avaliar causas e consequências; imagina para os nossos alunos que não têm planejamento de vida; imagina para os nossos alunos que não têm perspectiva de futuro. Escola é espaço de pensar o futuro. Escola é espaço para aprender sobre autodisciplina e projeto de vida. É um erro abandonar dessa forma as crianças, adolescentes e adultos que estão aprendendo a estudar. Isso geraria mais ansiedade para os aprendizes que já estão em estado de sofrimento pelo turbilhão de emoções da nossa sociedade individualista.

38 MILHÕES DE ANALFABETOS FUNCIONAIS¹

Este texto não tem o objetivo de trabalhar com números, é uma lista de pontos a serem considerados. No entanto, é alarmante os números relativos ao analfabetismo funcional no Brasil. A maioria do alunado das escolas públicas não tem condições de fazer a interpretação dos materiais de estudo sozinhos. Nossos alunos precisam de ajuda para interpretar enunciados de questões. A interpretação precisa da mediação do professor. Há quem tente culpar os professores pela dificuldade de interpretação dos alunos. Há quem culpe os professores dos anos iniciais, há quem culpe os professores de português, há quem tente culpar a cultura do povo brasileiro… E há a constatação de que não é frutífero ficar procurando culpados. Ler e escrever é compromisso de todas as áreas² é título de um livro produzido pela UFRGS. O acesso à cultura realmente não tem sido prioridade e deveria ser. São essenciais para enfrentar esse problema os programas de formação continuada, a valorização dos professores, os programas de incentivo a leitura, as parcerias das escolas com os teatros, os cinemas e demais espaços culturais etc. Não podemos medir esforços para achar soluções para esse problema nacional. Mais importante: não podemos medir esforços para evitar retrocessos! Como vamos aceitar a ampliação da EAD nesse contexto? Em que momento perdemos o prumo dessa forma? Estávamos discutindo a ampliação do tempo do aluno na escola (educação integral) e passamos a discutir a diminuição do tempo do aluno na escola? A ampliação da EAD na educação pública seria um retrocesso na luta contra o analfabetismo funcional.

POBREZA

O óbvio tem de ser dito: o Brasil é um país com muita pobreza. As condições de moradia são precárias. O odor cerca muitas casas devido a falta de saneamento básico. Grande parte da população vive em casas pequenas e com poucas peças muito compartilhadas. Às vezes não há mesa, às vezes não sofá, haveria espaço para uma escrivaninha? Um espaço para que um estudante mantenha-se sentado com os pés no chão e as costas eretas? Precisamos cuidar, sim, da postura dos alunos! E um ponto central: alimentação. Não se aprende com fome. É preciso garantir alimentação suficiente e saudável. É muito importante que a população infantil tenha uma alimentação balanceada que garanta a nutrição necessária para o seu pleno desenvolvimento. Escola é espaço para se alimentar bem! Além disso, a universalização do ensino é recente. Temos muitos alunos que vivem com avós, pais e outros responsáveis não alfabetizados ou com baixa escolaridade. Não precisamos colocar o peso do ensino domiciliar nas costas daqueles que tiveram o direito à educação negado nas suas infâncias. Precisamos buscá-los e trazê-los para escola.

EJA

Errar é humano, mas persistir no erro é burrice. A Educação de Jovens e Adultos existe para redimir um erro. Nos anos 60, meu pai era uma criança interessada em matemática, adorava fazer continhas. No entanto, não havia uma escola próxima e ele precisava trabalhar na lavoura. Nossa sociedade não foi capaz de garantir o seu trasporte estudantil. Nossa sociedade não foi capaz de evitar o trabalho infantil. Em 2020, várias vezes encontrei crianças vendendo bala nos ônibus. O trabalho infantil ainda não foi erradicado no Brasil. Além disso, tivemos e temos uma escola ainda muito autoritária e conteudista que afasta muitos alunos. Temos uma escola eurocentrista, que desdenha o conhecimento dos alunos e de suas comunidades, que diz que não somos brancos o suficiente para produzir conhecimento. Temos uma escola meritocrática que estimula o individualismo, a competição e a reprovação. Temos errado com os alunos desde muito e ainda em sempre, não devemos persistir no erro. Garantir uma Educação de Jovens e Adultos presencial e de qualidade é redimir o erro que cometemos com aqueles que foram impedidos de estudar na infância e na adolescência.

MULHER ESTUDANTE

Em 1928, Virgínia Woolf, escreveu o livro Um teto todo seu³ refletindo sobre o quanto as mulheres são historicamente impedidas de estudar, ler, escrever, produzir conhecimento. As mulheres não tinham e continuam sem ter direito a espaços seus para estudo. Aquelas poucas que conseguiram se destacar intelectualmente tiveram de lutar para terem seu teto, seu financiamento, seu tempo. Exigir que as mulheres estudem nos espaços privados é impedir o seu acesso à educação. Imagine a cena: uma família de classe média, um homem jogando videogame, uma mulher estudando e uma criança vendo TV. A criança pede mamá. O homem parará o jogo ou a mulher parará o estudo para atender à criança? A mulher cessa o estudo para atender a criança. Deve existir exceções, mas, para pensar a política educacional de um país, precisamos pensar bem além das exceções. E as mulheres pobres? E as mulheres negras? Aí pode-se imaginar diversos cenários com tantas mais barreiras impostas pelo capitalismo, pelo racismo e pelo patriarcado. As meninas da escola pública cuidam dos afazeres domésticos e dos irmãos, não têm tempo de estudar em casa. As mulheres da EJA muitas vezes tiveram de parar os estudos por terem engravidado; muitas vezes trabalham e criam seus filhos sozinhas. As senhoras da EJA enfrentam seus maridos sendo contra o retorno delas aos estudos. Precisamos garantir um espaço que acolha essas mulheres. A mulher estudante tem direito de ter uma escola toda sua!

EAD PARA OS RICOS?

Os de cima continuam aumentando a jornada de trabalho do dia e o tempo de serviço de uma vida dos trabalhadores. Não deixam tempo para a classe trabalhadora estudar. Os de cima continuam querendo monopolizar o acesso à educação e à cultura. Não querem investir em educação e cultura de acesso público. Os de cima continuam colocando seus filhos em escolas de educação integral com intercâmbio internacional de final de ano, tudo presencial. E querem que os pobres estudem nas suas míseras horas de descanso em seus pequenos cômodos de barraco. Os ricos continuam aumentando as suas presenças arrogantes nos espaços de poder. Mas os de baixo lutarão e se farão PRESENTES nas ruas, nas escolas, nas universidades!

¹ Brasil tem cerca de 38 milhões de analfabetos funcionais.

²Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. 8.ed. Porto Alegre: UFRGS, 2007

³WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985

*Maria Fernanda Viegas é professora de Língua Portuguesa em duas escolas públicas de Porto Alegre, uma municipal e outra estadual. Milita na Resistência Popular.