A revolta social no Chile: o desabamento das instituições e o fim de um ciclo histórico (parte 2)

No primeiro capítulo do artigo sobre a revolta social no Chile, abordei um pouco o tema constitucional e jurídico, de maneira bem simples, além de fazer uma projeção rápida sobre os porcentuais de votação no plebiscito. Tratei também da “fé” que existia por parte de uma grande maioria da população sobre os potenciais efeitos positivos que isso poderia ter, com a gestação de uma nova Carta Magna que fosse a bússola do Chile atual, uma das tantas respostas que o povo demanda nas ruas a cada semana.

Este será o fim do artigo sobre a revolta social no Chile. Espero que a leitura desta breve coluna seja de alguma ajuda para quem queira entender um pouco o processo do Chile, o qual foi muito difundido pela imprensa a nível mundial, ao significar a derrocada do país modelo do neoliberalismo na América Latina.

Sobre o plebiscito: possibilidades e riscos do processo

A votação já passou, e se deu à lógica esperada. Ganhou por uma ampla margem a opção do “Apruebo” com 78% dos votos (aproximadamente 5.600.000), transformando-se na maior votação porcentual na história do Chile, considerando o padrão eleitoral e o fato do voto voluntário. Também ganhou a opção de fazer uma espécie de “Assembleia Constituinte”, o que “garante” uma participação mais ampla do povo –  com certas limitações que não são menores.

Uma das grandes limitações será a necessidade de que os atores políticos que não militam em partido algum terão que se inserir numa lógica bastante similar à de um partido qualquer, ou seja, terão que formar uma base mínima de aderentes certificada pelo TSE do Chile, chamado por lá de SERVEL. É essa instituição que lhes dará a chance de concorrer a ser um constituinte dos chamados “independentes”.

Outro dos grandes problemas deste processo constituinte será o risco de que os chamados “independentes” sejam cooptados pelos partidos políticos tradicionais, com tudo o que isso traz para a manipulação de pautas e debates daquilo que se considera importante no momento atual do Chile.

Um último ponto que também sinto que pode ser importante sinalizar, entre outros tantos pontos que posso estar esquecendo ou omitindo neste análise, e que também é um grave problema, se dá pela necessidade destes independentes terem que abraçar uma pauta em comum, idealmente. Isso porque as vagas para os chamados independentes terão um número reduzido, gerando certa possibilidade de fragmentação de pautas que realmente sejam de interesse do povo, assumindo o fato político de que os independentes seriam neste processo uma espécie de porta-voz das demandas populares, as quais não terão abrigo nos partidos tradicionais.

O último intento por salvar o barco

Agora resta esperar como se continuará costurando nestes dois anos o dito processo institucional, fruto de uma jogada desesperada por parte de quase todo o campo político partidarista. Medida tomada para salvar a ordem institucional de um país que literalmente ardia nas suas principais cidades já fazia um mês, contando do 18 de outubro de 2019 em diante. O chamado “Acuerdo por la Paz Social y nueva Constitución” nasceu em uma madrugada do 15 de novembro daquele ano e foi o último intento das maquinarias políticas tradicionais de salvar a sua já destruída reputação perante o povo, de salvar a cabeça do presidente Piñera e a ordem republicana da qual tanto o país se orgulha. No entanto, foi também um intento em vão de fazer passar por dentro das instituições toda a energia política que transborda o país há mais de um ano até o dia de hoje.

Sem dúvida, o plebiscito nasceu de maneira espúria. Foram seus gestores, em sua grande maioria, os mesmo que o povo de maneira justa aponta como seus algozes durante estes trinta anos de falida transição democrática. Mas também foi o plebiscito, como contraponto a esta análise crítica, uma instância onde se concretizou, em aparência, uma das pautas mais sentidas pelo povo que era o fim da constituição do Pinochet. Foi a importância desse significado histórico que mobilizou tantas pessoas a votar, apesar das infinitas e justificadas desconfianças que o processo ainda desperta nas pessoas, tanto naquelas que votaram como nas que não o fizeram.

É importante demarcar que, apesar da minha desconfiança na gestação do processo constituinte, como a desconfiança nos atores que o articularam e por ser, de fato, um detrator do mesmo, não posso omitir o impacto que teve no povo o plebiscito como um evento político histórico, um divisor de águas do potencial novo país que se pretende construir entre todos. Como diria uma consigna muito popular nestes últimos tempos nas ruas: “nada sobre nós sem nós”. O processo da revolta social gerou uma onda ativa e consciente de participação do povo nos espaços de base, onde se começou a reconstruir as assembleias de vizinhos e um sem fim de espaços de construção e debate político sobre os caminhos do Chile que se queria pensar e construir. Isso foi algo que, de maneira maior ou menor, se amplificou por parte importante do país.

O plebiscito é sem duvida uma consequência institucional da luta popular e não um fruto concebido pelo povo. Uma vitória para alguns e um cheque em branco de papelão para outros, mas já foi, faz parte da história e será o tempo e os novos fatos políticos os que irão nos dizendo: quão ruim ou até que ponto é bom esse caminho que se abriu. Para o momento, são só dúvidas e desconfianças o que o povo tem.

O começo do fim: a ordem institucional em xeque e os partidos em crise terminal

A revolta social não teve programação, é certo, porém ela se fortalece dia a dia na sua extensão social e territorial, fruto de novas gerações que deixaram de acreditar na política institucional como única via de luta possível. Juventude que vê nos partidos uma forma piramidal e já obsoleta de construção. A revolta social tem seu coração e motor nos secundaristas, mas sobretudo nos anos de abusos que o povo sofreu. É esse povo atropelado pela democracia dos acordos entre a esquerda e a direita eleitoral quem hoje constrói a base da luta social e as experiências de poder popular cotidiana nos territórios.

A semente que germinou e floresceu depois do 18 de Outubro continua mais forte do que nunca. O povo, na sua grande maioria, está plenamente consciente de que a única maneira que todos aqueles dias de lutas não sejam em vão é tomar a pauta do debate, impôr suas demandas. É essa pauta de debates que está se construindo nos bairros, nas marchas, nas cozinhas populares, nos atos por vida digna dos sem teto, no sul de Chile com a luta da nação Mapuche pelo seu direito ancestral ao território, que até o dia de hoje traz sangue e dor para todas as comunidades em luta e resistência.

São muitas dívidas que o Estado do Chile tem com o povo, uma história complexa de se explicar em um par de páginas, pois as nossas profundas feridas vêm sangrando desde a ditadura e não será uma nova Constituição o que irá sará-las definitivamente, seria uma ilusão pensar assim.

A revolta social foi esse espaço sem fim em que o povo pobre e explorado se reencontrou, foi nesse dia em que novamente a história foi construída por seus verdadeiros protagonistas.

O processo que vive o Chile é um lento caminho, de idas e vindas, pelo qual todos os países da América Latina começaram a transitar. Com suas particularidades e tempos, sem dúvida, pois o desabamento das instituições e sua legitimidade serão inevitáveis, como também a posterior queda do modelo neoliberal e dos partidos que o sustentam, participando nesta democracia falida que temos no continente. A crise já está a caminho, mais cedo que tarde, esperamos.

Ignacio Munhoz é imigrante Latinoamericano, pesquisador informal das lutas populares, amante dos chocolates e do Colo Colo. Serigrafista emergencial até novo aviso. Samba e rap fazem parte do seu equilíbrio espiritual. Colunas de opinião quinzenais sobre conjuntura Latinoamericana.