“Sobrevivendo no Inferno”: desenvolvimento desigual e racismo estrutural – parte 1

“A cada quatro pessoas mortas pela policia, três são negras”
“Assustador é quando se descobre que tudo deu em nada e
Que só morre pobre”

 

Hoje damos início a uma série de 4 textos sobre o Sobrevivendo no Inferno (1997), do Racionais MC’s, buscando mostrar pontos estruturantes do disco e que fazem dele o mais radical do grupo e um marco do rap no Brasil. (Os textos sairão todas quintas-feiras).

 

O capitalismo funciona a partir da lógica dupla e combinada de miséria a uns e riqueza a outros. Aos de baixo, que são a maioria na sociedade global, cabe a exploração do trabalho e a sustentação da sociedade assimétrica. Aos de cima, pequena quantia ao redor do mundo, resta administrá-los sem precisar trabalhar – já que propriedades ou capital não produzem nada, mas sim a força de trabalho (nos termos de Mikhail Bakunin em “O sistema capitalista”). A edificação da sociedade capitalista tem vários níveis e o mais alto sempre oprime o mais baixo e assim por diante. A competição e individualização, tão caras ao sistema capitalista, agem em conjunto oprimindo os trabalhadores, muitas vezes colocando-os uns contra os outros, o que fará com que no Racionais apareça como força motriz o sentimento de pertencimento e união dos oprimidos históricos da sociedade brasileira – negros, pobres, periféricos – e a luta de resistência contra esse sistema.

O processo social brasileiro não segue à risca a cartilha do capitalismo, dada as várias especificidades locais, mas o contempla no que diz respeito a esse desenvolvimento desigual e combinado. O crescimento da vida social brasileira é e sempre foi distinto por classes, e essa desigualdade compõe o desenvolvimento social indissociavelmente. O progresso capitalista não se dá apenas pela dominação do homem sobre as forças de produção, como apontou George Novack em estudo talvez pioneiro (Novack, “A lei do desenvolvimento desigual e combinado da sociedade”), mas também, e muito, do homem sobre o homem: a escravização. Analisando o Brasil enquanto nação “independente”, pelo menos desde 1822, as ideias importadas da Europa como liberdade do sujeito e certo liberalismo econômico chocam-se com a sociedade escravocrata. Por mais que o achado de Roberto Schwarz hoje em dia esteja apresentando limites,[1] é notável perceber esta que é uma das contradições formativa do país e que implica diretamente no presente. Progresso e atraso, agora sim típicos do sistema capitalista, são o símbolo do Brasil até hoje.

O avanço, que se lê como retrocesso, é altamente visível, principalmente nessa época. A relação colônia-metrópole, que vivemos há quinhentos anos, é matéria mais que suficiente para perceber as fraturas sociais causadas por, naturalmente, um desenrolar histórico-social desigual. Os colonos oprimem os colonizados, que por sua vez – os de classes mais altas – oprimem os mais de baixo, e estes, os escravizados. A escravização do povo negro tem inicio, em território hoje brasileiro, e a opressão continuada aos dias atuais, em uma suspensão da História, servirá de base para a criação do grupo de rap Racionais MC’s. O racismo, hoje relação social dentro do padrão[2] , naturalizada após anos de genocídio e que é fundamental para a exploração econômica (e que faz com que pessoas digam que não há racismo no Brasil); o uso da violência policial que atinge em maioria os negros; os processos para higienizar e políticas para embranquecer; tudo isso mesclado a uma composição agressiva e combativa, junto a “uma pistola automática e um sentimento de revolta”, vai fazer de Sobrevivendo no Inferno (1997) um marco de resistência e luta negra através da música no país.

[1] Ver FISCHER, L.A. “Limites do modelo Ideias fora do lugar”. In.: Das Ideias fora do lugar ao Perspectivismo ameríndio: um modelo para uma nova História da Literatura Brasileira, 2017.

[2] ALMEIDA, S. “O que é racismo estrutural?”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PD4Ew5DIGrU>

Rodrigo Mendes