“Sobrevivendo no Inferno”: desenvolvimento desigual e racismo estrutural – parte 2

Seguindo a série de 4 textos sobre o Sobrevivendo no Inferno (1997), do Racionais MC’s, hoje apresentamos a 2ª parte do trabalho, que busca mostrar pontos estruturantes do disco e que fazem dele o mais radical do grupo e um marco do rap no Brasil. (Os textos saem todas quintas-feiras).

 

Uma espécie de Robin Hood moderno aparece em “To ouvindo alguém me chamar”. A narração diz que o sujeito comprava brinquedos e distribuía para as crianças da comunidade. Uma figura como esta só pode existir em uma sociedade desigual, já que não haveria necessidade de suprir a carência das várias crianças em questão em uma sociedade socialista[1], por exemplo. O mesmo acontece com o rap. Só há um estilo musical como este, só há um grupo como o Racionais MC’s porque a sociedade brasileira criou e mantém fraturas sociais que agora são expostas; porque os negros foram desde sempre violados no direito mínimo e essencial de liberdade; porque a vida social no Brasil não oferece oportunidades aos negros, principalmente os de periferias, como o são os integrantes do grupo e seus interlocutores principais. Desse modo, a resistência e a luta são chamadas a partir da conscientização, que passou a ser parte essencial do rap e que em Sobrevivendo no Inferno encontra seu ponto mais alto na discografia do grupo e possivelmente do rap no Brasil. O Racionais é fruto da violência da sociedade branca brasileira e a responde no mesmo nível; é o “efeito colateral que seu sistema fez”.

“Gênesis (intro)”, passagem rapidamente falada entre a faixa que abre o disco e o primeiro rap, “Capítulo 4, Versículo 3”, Mano Brown diz: “O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as arma, as bebida, as puta.” É a antecipação do que basicamente será discutido nos setenta e um minutos do álbum. Importante dizer que o machismo ali explícito segue também ao longo das músicas em maior ou menor medida.

O cartão de visitas vem, indiscutivelmente, com “Capítulo 4, Versículo 3”. O sentimento de revolta, dito antes, junto à necessidade de sobreviver no inferno, que é o Capão Redondo (do micro que diz sobre o macro, a sociedade brasileira), vem na dicção cantada, agressiva, quase gritando, mas antes de tudo nas estatísticas que abrem a música. É algo possivelmente único na tradição da música popular brasileira e carrega consigo a explicitude da violência contra os negros pobres, violência orquestrada pelo Estado, junto ao seu braço armado de violência legítima, a polícia militar, compactuado pela burguesia branca e difundido pela grande mídia. A estatística carrega consigo o estatuto de verdade para seu conteúdo, e isso é muito caro ao Racionais já que sua dicção se assenta na desigualdade e no racismo, realidade vivida dia após dia (há séculos) por eles e por sua fratria em todos os lugares, como “Periferia é periferia” irá mostrar. As palavras escolhidas a dedo nas composições de alto nível do grupo desvelam e explicitam seu mundo, além de buscar identificação com seus manos. A vivência do eu cancional, quase sempre em 1ª pessoa, também em tom de testemunho[2], carrega através das palavras grande parte da força e impacto das músicas. É a força da verdade, da realidade: lá a bala não é de festim e não tem duble.

O combate no disco é sempre oriundo do tensionamento entre negros | brancos; pobres | ricos (ou classe média), aqui se tratando individualmente; classe pobre | Estado (juntam-se a mídia e a polícia). Ao falar de um ou de outro, fala-se do todo. Essas tensões resultam na criação de um muro com forças iguais o segurando. De um lado o Racionais e a fratria negra e pobre das periferias, que o sustentam quando se negam a compactuar com o racismo, com a violência policial, com a desigualdade de classe, com a mentira da “democracia racial”. Quando o “branquinho do shopping” passa a figurar e a exercer função de balizador de um ethos a ser seguido, significa a quebra do muro e a mistura, motivo de vergonha para os manos de cá. Do outro lado está a formação cordial brasileira, branca em sua maioria, muitas vezes alienada pela grande mídia, a serviço do Estado, que por sua vez é subjugado pelo capitalismo e suas exigências.

As forças do processo social desigual e combinado têm como outro ponto de tensão o papel da mídia e seu posicionamento. “Capítulo 4, Versículo 3” é um ataque constante a ela e começa pelo deboche: “a primeira faz bum, a segunda faz tá”, que originalmente era uma propaganda de lâmina de barbear, aqui aparece em chave invertida, subversiva. A crítica toma fôlego e nos versos “Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor / Pelo rádio, jornal, revista e outdoor” explicita o posicionamento do grupo. A vida contemporânea – e a mídia tem amplo espaço na sociedade – é mediada pela tevê, pelo espetáculo.[3] A propaganda supre as lacunas e oferece um mundo alienante, logo tranquilo à sociedade. De vez em quando aparece um negro ou uma negra na tevê e está tudo bem, “racismo não existe” como ironiza “Em qual mentira vou acreditar?”. O Racionais surge a contrapelo do espetáculo, é desalienante, mobiliza. Seu rap é uma extensão da periferia e aí está uma das forças do grupo: são várias vozes cantando em uníssono; são “cinquenta mil manos” apoiando Mano Brown, KL Jay, Edi Rock e Ice Blue. É tarefa do seu rap a conscientização dos seus irmãos, e ela passa, dentre outras coisas, pela emancipação em relação à mídia. Esta que, a serviço do capitalismo e sua lógica perversa de consumo = felicidade, cria dissonâncias do que se pode ou não ter: “Foda é assistir a propaganda e ver / Não dá pra ter aquilo pra você”. A propaganda em larga escala e o excesso de marcas criam um imaginário de vida que não pertence ao lado do muro onde fica a periferia, diz respeito ao centro e às zonas burguesas. Em “Fim de semana no parque”, do disco anterior Raio-X do Brasil (1992), essa crítica já estava posta: “Tem corrida de kart dá pra ver / é igualzinha a que eu vi ontem na TV”.

Essa raiva é plantada desde o nascimento e vai se aprimorando com o passar dos anos. Com o constante aumento da desigualdade social no Brasil, onde as classes se distanciam cada vez mais e o abismo cresce, a violência vai sendo gerada e volta, naturalmente, para a sociedade. A violência policial assola as comunidades pobres ao redor do país com seu prevalecimento e abuso de autoridade. Os resultados estão nas estatísticas apresentadas pelo grupo, no sentimento de revolta dito em “Gênesis (intro)” e na postura de guerra a que o Racionais se propõe para resistir e lutar contra o sistema opressor. A guerra às drogas, das maiores mentiras que circulam no Brasil, tem o respaldo da classe média confortável e dos grandes empresários enquanto moradores de áreas pobres sofrem cotidianamente com os respingos desse banho de sangue[4]. “Ah, a polícia sempre dá o mal / Exemplo, lava minha rua de sangue, leva o / Ódio pra dentro” é como Edi Rock indica, em “Mágico de oz”, o caminho da violência: do Estado para a periferia, da periferia para a sociedade como um todo. É uma estrada cíclica que, sem interesse de resolução por parte do Estado, ficará para sempre à margem da sociedade, apartada do processo de modernização capitalista. A realidade não integrada é defendida e reivindicada pelo grupo: são marginais e é da periferia que parte o discurso.[5]

Depois de colocar a raiva para fora com todo ímpeto e consciência na música anterior, “To ouvindo alguém me chamar” mantém a linha, agora em uma narrativa mais concisa, contando a história de Guina e do narrador, amigo daquele e que vai se envolver junto em crimes. A morte do narrador ao final pela arma do Guina indica a circularidade da violência nas comunidades. As assimetrias se materializam no discurso ao habilmente subverter palavras como “professor”, “especialista” e “vestibular”, que no mundo integrado referem-se ao ambiente escolar/universitário, mas que aqui delimitam as oportunidades concedidas a quem é pobre, negro, de periferia: o crime. “professor no crime”, “especialista em invadir mansão” e “prestou vestibular no assalto do busão” são alguns dos versos nos quais o desenvolvimento desigual e combinado da sociedade se faz presente, agora envolvendo oportunidade de acesso à educação institucional. Doutorado é um sonho e contrapõe o narrador a seu irmão.

Ao longo da música percebem-se claramente sons do ambiente. Essa é mais uma entrada da vida real na música do grupo, reforçando seu compromisso com a realidade vivida e aumentando a tensão: os sons, intercalando sirenes, gente ofegando e som de monitor multiparâmetro (aquele que mostra os sinais vitais da pessoa e que se torna contínuo quando o coração para de bater) misturam-se ao canto de Mano Brown em movimentos precisos do DJ KL Jay. Esse tipo de escolha também é, naturalmente, deliberada, e diz novamente sobre o lugar onde o grupo se coloca. Sons de sirene e de tiros não fazem parte do cotidiano da classe média, mesmo a baixa. O beat, a cargo de KL Jay, preciso nas batidas, é também um indício de precariedade que materializa as assimetrias desse desenvolvimento social fraturado. A comparação totalmente desigual na História da música popular no Brasil são as harmonias sofisticadas da Bossa Nova.

Como dito anteriormente, o capitalismo trabalha criando níveis sociais distintos provocando sempre competição ao individualizar os sujeitos. A consciência de classe é algo a ser buscado e o trabalho do Racionais vai por esse caminho. Em uma passagem um pouco sarcástica, o narrador chama o segurança do banco assaltado em questão de “super-herói”. Os bancos, suprassumo da concentração de riquezas, tem como segurança (provavelmente terceirizado) gente de baixo, talvez iguais ao narrador assaltante, ao Guina e aos demais, mas o capitalismo o obriga a trabalhar para ele, inimigo da classe trabalhadora, em troca de sobrevivência. “Sobreviver”, no título do disco, significa sobreviver ao “cotidiano suicida” da periferia, por causa das drogas e da polícia, mas também sobreviver à vida de miséria imposta pelo capitalismo. E é essa mesma miséria que desestabiliza núcleos familiares, que afastam as crianças da escola, que colocam a vida no crime como alternativa, muitas vezes única, e, sem proteção do Estado, essa vida segue marginalizada, em círculos, suspensa. O narrador, sobre o Guina, diz: “De como era humilhante ir pra escola. / Usando a roupa dada de esmola. / De ter um pai inútil, digno de dó. / Mais um bêbado, filho da puta e só.” É o bastante para perceber como, desde cedo, o desenvolvimento desigual age; e combinado, porque ao mesmo tempo o “branquinho do shopping” está confortável, pensando em viver e não sobreviver. Todos esses elementos se refletem no futuro (se antes o negro não virar estatística, se for um vencedor de chegar aos 27), sendo então impossível a comparação, sendo inviável falar em meritocracia em um país como o Brasil. (No primeiro disco do grupo, preparando sua dicção, essa e outras críticas já estavam postas com igual peso: “como é que vão aprender, sem o incentivo de alguém / sem orgulho, sem respeito / sem saúde, sem paz”, em “Homem na Estrada”, Raio-X do Brasil, 1992).

O papel da mídia, do espetáculo, da propaganda, retorna, agora com a crítica voltada às datas comemorativas impulsionadas pelo capitalismo. Dia das mães/pais é uma bobagem, mas todo mundo gasta. Aparece aqui com “Sempre a mesma merda, todo dia igual / Sem feliz aniversário, Páscoa ou Natal.” e em “Fórmula mágica da paz” volta com uma ironia cruel referente ao Dia das Crianças. “Rapaz comum”, última canção antes da virada do disco (virada representada pela passagem “…” na qual se escuta apenas uma base), em uma narrativa na qual o narrador está morto e conta sua história, revela o entendimento do jornal e noticiários em geral como transformadores dos fatos em notícias além de retomar a violência policial como estrutura de governo.

A naturalização das mortes na periferia é representada metaforicamente pela interrupção do trajeto, do caminho da vida, do trilho, em: “É mal! Cotidiano suicida! / Quem entra tem passagem só pra ida!”. Ver seus manos cobertos com jornal está virando natural em locais onde a polícia faz o que quer o e Estado se omite. A construção dessa vida pela metade é plantada no imaginário daqueles moradores desde cedo, e “Um corpo a mais no necrotério, é sério. / Um preto a mais no cemitério, é sério” passam a ser quase banalidades na vida corriqueiramente violenta da favela. O narrador, carregando nas costas o Racionais e todas as comunidades que estarão depois homenageadas em “Salve”, posiciona-se veementemente contra, e convoca a nós, ouvintes, a fazer o mesmo. Até quando será natural as chacinas de negros pobres? Até quando será tolerável? São questões que o Racionais nos coloca, queiramos ou não.

[1] Há várias correntes dentro do socialismo, mas aqui me refiro ao princípio estruturante da ideologia, comum aos vários seguimentos, que é a sociedade sem classes.

[2] Walter Garcia em ensaio sobre o grupo notou muito bem a mudança de dicção, do primeiro EP, Holocausto Urbano (1990), ao primeiro disco, Raio-X do Brasil (1992), quando o eu cancional deixa o tom professoral de lado em troca de mais agressividade e veracidade, sendo (ex)presidiários e assaltantes, por exemplo, os narradores.

[3] KEHL, M.R. “Muito além do espetáculo”.

[4] São inúmeros os exemplos dessa violência relatada por moradoras/es de periferias ao redor do país. Aqui em Porto Alegre, recentemente, o longa De boca em boca, de Wagner Abreu, é peça fundamental para se entender isso. De repercussão nacional, na literatura, Capão Pecado, de Ferréz, é outro ótimo exemplo.

[5] Houve um incidente elucidativo em uma premiação que o grupo compareceu e que serve para pensar essa postura em relação a outros negros da música popular brasileira. Em atrito com Carlinhos Brown, apresentador do programa na MTV, KL Jay o responde dessa maneira: “Ele defende a miscigenação porque tem dinheiro e vende disco, mas os irmãos dele vivem na miséria.”. (A discussão era comprar o discurso da classe média branca de miscigenação ou se colocar como negros nas músicas e nos discursos, o que, para Carlinhos Brown, era muito agressivo.)

Rodrigo Mendes