Só rico lê? Entenda a relação do sistema tributário no Brasil com o custo de vida da população

Essa semana a Receita Federal emitiu uma nota técnica em que justifica a taxação dos livros: só rico lê. A nota da receita faz parte de uma força tarefa para explicar as medidas que devem ser tomadas com a proposta de reforma tributária do governo federal.  Não é de hoje que ouvimos falar sobre a necessidade de uma reforma tributária no nosso país. O sistema tributário deve ser analisado como um instrumento de política econômica e por isso a depender de quem propõe mudanças, as propostas defendidas serão mais ou menos favoráveis  para a vida do nosso povo. Paulo Guedes, grande defensor do neoliberalismo, não deixaria passar essa oportunidade de tornar mais caro o custo de vida e executar mais uma fase do seu plano de ajuste fiscal. No meio do pacotão de reforma tributária proposta pelo ministro da economia, o governo quer taxar os livros, que são isentos de tributos desde o ano de 2014.

Afinal, o que é sistema tributário?

Chamamos de sistema tributário o complexo conjunto de planejamento, arrecadação e fiscalização de tributos no país. Tributos são pagamentos em espécie devidos aos entes federados (municípios, estados e união), em consequência de alguns fatos, que não são estabelecidos como infração ou crime. Paga-se tributo simplesmente por ter ou fazer algo estabelecido em lei. É o que conhecemos como “fato gerador” da obrigação tributária.

Acontece que existem alguns casos previstos em lei em que, mesmo acontecendo o “fato gerador”, a obrigação de pagar o tributo não existirá. É o caso da imunidade de impostos que têm o objetivo de não tributar meios que garantam o exercício de direitos sociais, como liberdade de expressão e acesso à cultura. É a imunidade que incide, por exemplo, sobre livros, jornais periódicos e o papel destinado a sua impressão, fonogramas, videofonogramas musicais contendo obras de autores brasileiros e/ou interpretados por artistas brasileiros.

Por outro lado, existem casos em que mesmo acontecendo o “fato gerador” e dele se originando a obrigação de pagar o tributo, a lei determina que os entes federados não façam a cobrança. É o caso das isenções, que são opções de política econômica com o objetivo de reduzir o valor de alguns bens de consumo.  As isenções podem ser estabelecidas por causa dos objetos e de pessoas (pessoas de baixa renda não pagam IPTU, por exemplo).

Teoricamente o dinheiro arrecadado com o tributo deve ser aplicado no financiamento de políticas públicas e do próprio funcionamento desses entes (obras públicas, folha de pagamento de servidores, contas de energia, água e internet de prédios públicos, insumos para hospitais, materiais para as escolas, etc.). Na realidade, os valores arrecadados servem para os governos implementarem seus programas viabilizando compromissos assumidos com as forças políticas que fizeram suas campanhas e lhes dão sustentação.

Porque precisamos de uma Reforma Tributária?

O sistema tributário no Brasil sofre de dois grandes gargalos: um na entrada e outro na saída. Na entrada do tributo, temos um sistema que proporcionalmente cobra menos dos mais ricos e mais dos mais pobres, tornando o custo de vida cada vez mais duro para os de baixo e facilitando a acumulação de riquezas para os que cima.

Para os tempos atuais, precisamos defender como política tributária uma reforma baseada em três eixos fundamentais: I) tributação da renda e patrimônio, e não do consumo; II) progressividade da tributação; III) combate à sonegação fiscal.

A tributação sobre o consumo é a principal característica do sistema tributário brasileiro e incide de várias formas na cadeia produtiva de bens e serviços. Das bases de incidência dos tributos: patrimônio, renda e consumo, esta última responde no Brasil pela maior parte do produto da arrecadação tributária. Os tributos incidentes sobre o patrimônio representam 3,52%, sobre a renda 24,14%, e sobre o consumo 68,20% do total da nossa carga tributária, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no ano de 2011 (cálculo realizado tendo por base Brasil (2011b, p. 16).

Para que se entenda melhor, o imposto sobre o consumo é aquele que se incorpora ao produto final consumido por você no dia-a-dia, quer em forma de bens, nas prateleiras comerciais (e também nas compras pela internet), quer em forma de serviços. Os tributos sobre o consumo têm incidência direta no aumento do custo das mercadorias e, por consequência, do custo de vida da população e na possibilidade de uma vida digna para o nosso povo.

Por outro lado, os tributos sobre a renda da população incidem de forma regressiva. Ou seja, quem tem menor renda paga mais tributo, quem tem maior renda paga menos tributo. Se você recebe salário em um trabalho formal, percebe que em seu contracheque há o desconto de contribuições previdenciárias e, dependendo do valor que você recebe, de imposto de renda. Tomando como base o salário mínimo, por exemplo, observa-se que as famílias com renda de até dois salários mínimos pagam cerca de 48,8% da sua renda em tributos. Já as famílias com renda acima de 30 salários mínimos pagam aproximadamente 26,3%. Isso acontece, porque a lei prevê uma porcentagem (cujo nome técnico é alíquota), diferente para cada faixa de valores recebidos como renda diferente, diminuindo o percentual à medida que as rendas aumentam. Mais uma vez, o sistema tributário brasileiro colabora para a cumulação de riquezas e agravamento das desigualdades sociais.

Por esse motivo, devemos defender uma reforma tributária que adote a progressividade na tributação da renda e do patrimônio, com porcentagens de alíquotas maiores sobre rendas maiores e porcentagens menores sobre rendas menores, com um faixa de isenção, ou seja, de não cobrança de tributo nenhum, para quem recebe salário mínimo. Esse pode ser um instrumento importante na luta por uma renda digna.

Importante lembrar que o Brasil nunca regulamentou o imposto sobre grandes fortunas, o que significa, na prática, que tal imposto não existe. Essa opção demonstra claramente a intenção dos de cima em proteger suas riquezas com a cumplicidade do Estado que, independente do governo, mantém esse assunto intocável.

O planejamento tributário é uma face da política econômica de Estado e o Brasil escolheu por tributar o consumo, violando o princípio da capacidade contributiva e onerando aqueles que menos deveriam contribuir, colaborando para a formação de uma sociedade menos justa e aprofundando o abismo social existente em nosso país.

Mesmo diante de um sistema tributário que tribute menos o consumo e mais patrimônio e renda, estes últimos de forma progressiva, ainda é necessário falar sobre sonegação fiscal. A sonegação acontece quando as empresas deixam de declarar fatos que geram obrigação tributária. Grosso modo, acontece sonegação quando o tributo devido não é declarado, nem pago. Se persistir a sonegação pelos ricos, significa que a conta do orçamento público continuará caindo no colo da população.

Analisando os dados do Tribunal de Contas da União, conclui-se que os maiores sonegadores do Brasil atualmente estão nos setores de agronegócio, energia, alimentação e bancário. Levantamento feito pelo De Olho Nos Ruralistas, utilizando dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), mostra que 50 empresas ligadas ao agronegócio devem tributos à União que acumulam R$ 205 bilhões de reais. Se esse valor fosse quitado pelos empresários, o Brasil poderia pagar quatro meses de auxílio emergencial aos trabalhadores informais, autônomos e desempregados, já que, de acordo com o Ministério da Economia, cada mês do benefício custa R$ 51 bilhões.

A sonegação desequilibra qualquer modelo tributário e empurra para os de baixo a conta das finanças públicas. E aqui se trava, silenciosamente, mais uma batalha na luta contra a acumulação de riquezas.

E como a reforma tributária quer taxar os livros?

A proposta de reforma tributária apresentada por Paulo Guedes em 21 de julho de 2020 segue a regra geral da política econômica do Governo Bolsonaro: o ajuste fiscal e o aumento do custo de vida da população para  benefício do mercado financeiro.

No caso específico da tributação de livros, existe a proteção da imunidade constitucional, que impede a incidência de impostos sobre livros, jornais periódicos e o papel destinado a sua impressão. No entanto, é possível incidir sobre estes itens taxas e contribuições. Acontece que uma lei de 2014 concedeu isenção das contribuições sobre a venda de livros e do papel usado para a sua fabricação.

A proposta de reforma de Paulo Guedes propõe a criação da Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), em substituição à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), ao Programas de Integração Social (PIS) e ao Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep), unificando as contribuições sobre o consumo.

Com a justificativa de transformar três tributos em um e, supostamente, simplificar o nosso complexo sistema tributário, Paulo Guedes na realidade enfia mais uma bomba, dessa vez no bolso do consumidor, ou seja, a população. A CBS terá uma alíquota de 12% e será uma nova forma de tributar o consumo. Contudo, a CBS prevê uma regra de não conceder benefícios, de maneira que as isenções válidas para as antigas contribuições serão extintas, inclusive as incidentes sobre os livros.

Criando um novo tributo sobre o consumo e acabando com os antigos benefícios de isenções sobre alguns produtos, Paulo Guedes torna mais caro o produto final consumido por nós, aumentando nosso custo de vida.

A Receita Federal mente quando afirma que só rico lê. Primeiro porque os parâmetros utilizados para chegar a essa conclusão não dão conta da realidade do comércio de livros fora de livrarias constituídas como empresas. Segundo, porque ler não é sinônimo de comprar livros e essa posição não considera, por exemplo, o consumo de livros pela população em bibliotecas institucionais ou comunitárias. É um argumento falacioso com o objetivo de fortalecer um governo negacionista da ciência e do conhecimento. Livros já estão caros, como todos os outros produtos consumidos pela população. Nossa tarefa na atual conjuntura é defender a redução do custo de vida, inclusive dos livros.

Melka Barros é auditora fiscal de tributos, militante de Direitos Humanos e da luta pelos territórios de povos tradicionais no Ceará.