Quando o jornalismo perde a visão: a imprensa na mira da violência policial

Artigo de opinião por Melka Barros*
e Ricardo Flores Barreto**

Violência policial é a regra

Operações das polícias militares cujas abordagens terminam em tragédias ou mesmo ações deliberadas por parte de policiais, em serviço ou não, que ultrapassam os limites da legalidade são comuns no Brasil, como ficou evidente no cenário de violência e morte na favela do Jacarezinho (RJ) no mês passado.

Esse tipo de conduta é um modo de operar recorrente das polícias militares no Brasil desde a criação da instituição, o que nos coloca em estado de constante alerta. A Anistia Internacional em seu relatório anual concluiu que em 2020 a violência policial se intensificou no nosso país em comparação ao ano anterior, tornando a bala cúmplice do vírus na mortalidade das favelas e territórios de povos tradicionais.  O mesmo relatório chama a atenção para os ataques contra jornalistas no nosso país. Entre janeiro e setembro do ano passado, 449 declarações contra o trabalho da imprensa foram feitas por integrantes do governo federal.

Em manifestações de rua, casos que analisaremos aqui, insatisfeitas em poder se utilizar apenas de armas “não letais”, as polícias militares se utilizam delas com o fim de mutilar permanentemente suas vítimas. Afinal, é de amplo conhecimento que as balas de borracha, para que sejam de fato “não letais”, devem ser disparadas apenas na área das pernas, nunca acima da cintura (muito menos no rosto!) e em uma distância de no mínimo 20 metros do alvo. Ou seja, nada que as polícias militares cumpram em qualquer manifestação, dada sua clara intenção de ferir gravemente os manifestantes, jornalistas ou quem quer que esteja próximo ao local, tudo, na maioria dos casos, com a cumplicidade do Poder Judiciário.

O caso do fotojornalista Alex Silveira

No dia último dia 10 de junho, o Supremo Tribunal Federal analisou o caso de Alex Silveira, um fotojornalista que, enquanto cobria uma manifestação em São Paulo no ano de 2000, perdeu a visão por uma bala de borracha disparada pela polícia que atingiu um de seus olhos, ficando impossibilitado de trabalhar.

O caso traz à tona a violência policial presente desde longa data em manifestações e nos põe a refletir sobre os riscos que sofrem jornalistas em atos de rua e a importância de uma imprensa livre, autônoma e presente nas trincheiras da luta popular.

Em sua decisão, o STF determinou que é responsabilidade do Estado se profissionais da imprensa forem feridos por agentes policiais em manifestações, cabendo indenização, salvo se “culpa exclusiva da vítima”.

Com essa decisão, o caso poderá ser utilizado como parâmetro para outras situações semelhantes, devendo, sempre que se verificar as mesmas condições, ser aplicado o mesmo entendimento. No caso de Alex Silveira, o juiz de primeira instância havia reconhecido a responsabilidade do Estado pelo ferimento causado pela polícia, mas o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em segunda instância, mudou a decisão entendendo que o ferimento por bala de borracha no olho teria sido de “culpa exclusiva da vítima”, não cabendo, então, indenização. O caso precisou chegar ao STF para que, mais de 20 anos depois do ferimento, o fotojornalista pudesse ser indenizado.

Ainda que esse entendimento seja um avanço, por dar uma mínima maior garantia na liberdade de imprensa e na liberdade de manifestação, se analisado como um todo, o caso não pode ser chamado de uma “vitória”.

Em primeiro lugar, é espantoso que tenha sido necessário chegar à Suprema Corte brasileira, com uma situação extrema de um fotojornalista que levou um tiro da polícia em um dos olhos, ficando cego deste, com isso, e permanentemente impossibilitado de exercer sua profissão, após mais de 20 anos do ocorrido, para que se constate algo tão óbvio quanto o cabimento de indenização pelo Estado à vítima da brutalidade cometida pela polícia.

Afinal, a Constituição Federal é absolutamente clara ao estabelecer que é de responsabilidade do poder público os danos que os seus agentes, no exercício de suas funções, venham a causar em terceiros (art. 37, § 6º, da Constituição). Ou seja, não haveria tamanha controvérsia que exigisse a provocação do STF, se não fosse a cumplicidade do judiciário paulista em atacar brutalmente o direito de imprensa e à livre manifestação, ao decidir bizarramente que tamanha violência cometida pelo então governo de São Paulo, sob a chefia de Mário Covas (PSDB), e sua Polícia Militar teria sido “culpa exclusiva da vítima”.

Em segundo lugar, há de se refletir quais os reflexos que toda essa demora de mais de 20 anos em se tomar uma medida cabível tiveram no aparato repressor Brasil afora em todos esses anos. Apenas para exemplificar, foram inúmeros os jornalistas feridos pela polícia nas manifestações de 2013 e 2014, inclusive com vítimas também perdendo a visão por tiros de bala de borracha nos olhos. Como se não bastasse, menos de duas semanas antes do julgamento em questão, nas manifestações contra o governo Bolsonaro que ocorreram por todo o país no dia 29 de maio de 2021, viu-se o caso de Recife, em que dois homens, que nem sequer participavam da manifestação, foram atingidos por balas de borracha nos olhos e perderam a visão permanentemente.

Ademais, há de se apontar que, mesmo depois dessa decisão, a responsabilização do Estado em casos como esses sofre limitações. Nesta tese aprovada pelo STF, cabe a excludente de responsabilidade da polícia militar nas hipóteses em que o profissional de imprensa descumprir ostensiva e clara advertência sobre acesso a áreas delimitadas em que haja grave risco a sua integridade física.

Ou seja, será considerada “culpa exclusiva da vítima”, autorizando a violência policial, se o profissional da imprensa vier a descumprir advertência da autoridade policial sobre o acesso a áreas de risco delimitadas. Ora, e se a polícia, como de costume, simplesmente delimitar toda a manifestação como uma “área de risco”? A imprensa simplesmente não poderá cobrir a manifestação, sob o risco de tomar um tiro nos olhos? A polícia poderá cometer os abusos e truculências que quiser com os manifestantes, sem que a imprensa possa dar visibilidade? Quem frequenta manifestações sabe o quanto a presença da mídia é importante para fins de garantia ao direito de manifestação, sobretudo em contextos de repressão. Ter a autoridade policial tal poder de “delimitar” as áreas que a mídia pode ou não estar é extremamente perigoso.

Por fim, não há como não comentar, quanto ao julgamento do último dia 10, sobre o bizarríssimo voto único que foi contrário à responsabilização do Estado para o caso, o mais recente ministro Kássio Nunes Marques, que foi indicado por Bolsonaro.  Ele fundamentou seu voto contrário ao fotojornalista adiantando que se dependesse dele e de quem o nomeou, o Judiciário seguiria cúmplice de tais ataques aos direitos de imprensa e de manifestação, ataques que resultam em sabe-se lá quantas pessoas perdendo a visão e sofrendo sequelas permanentes apenas por estarem em um local em que esteja ocorrendo uma manifestação, seja como manifestantes, jornalistas ou mesmo passando pelo local.

O sistema judiciário não é a garantia de qualquer direito do povo. Mesmo neste caso do fotojornalista, resta ainda saber se os juízes e tribunais de origem irão seguir minimamente a tese fixada pelo STF ou se simplesmente irão decidir corporativamente a favor dos de cima, como geralmente o fazem a despeito de qualquer lei ou entendimento hierarquicamente superior. Independente do que vier do Judiciário, contudo, somente a organização e a mobilização do povo poderá garantir qualquer direito que seja, inclusive os direitos de manifestação e de liberdade de imprensa.

* Melka Barros é auditora fiscal de tributos, militante de Direitos Humanos e da luta pelos territórios de povos tradicionais no Ceará.

** Ricardo Barreto é graduando em direito e militante do Movimento de Organização de Base do Rio de Janeiro (MOB-RJ)