O último muro: Os Despossuídos de Ursula K. Le Guin

Publicado em 1974, esse livro é único em todos os seus aspectos. Assim como um muro, o livro pode ser visto de maneira ambígua, a depender de que lado se está. Crítica à sociedade capitalista e à guerra fria, sobre as possibilidades de uma sociedade utópica ou até mesmo crítica contra a organização social.

Para mim esse livro não é sobre nenhuma destas coisas, e o problema dessas interpretações é que costumam ser feitas por um âmbito meramente literário destacado de reflexões políticas de cunho libertário, ou por grupos anarcóides e próximos a correntes individualistas.

O enredo é o seguinte: havia um movimento anarquista muito forte no planeta de Urras, liderado pela emblemática Laia Odo, e que conduz uma série de greves e insurreições. Apesar das derrotas a situação é bastante insustentável para os governos, que no fim decidem fazer um acordo: disponibilizar naves espaciais para que todos os odonianos deixem o planeta e empreendam a colonização da lua chamada Anarres e ali possam construir a sua utopia.

A história começa 170 anos depois da colonização. A sociedade anarco-comunista em Anarres se desenvolveu, apesar da aridez e inospitalidade do planeta. Uma pequena área cercada por um muro é destinada como zona de pouso onde trocam minérios por todos os bens que necessitam com Urras. Nossa personagem é Shevek, físico que estuda o tempo, e que decide ir para Urras para continuar sua pesquisa, pois em seu planeta não consegue mais continuar seu trabalho.

Os capítulos do livro se alternam entrem Shevek em Urras com a sua vida em Anarres em que acompanhamos seu crescimento. Um paralelismo que está presente ao longo de todo o livro que está baseado nessa dualidade Urras-Anarres, que para mim soa muito como uma transposição da dualidade entre a modernidade capitalista e o movimento libertário. Uma dualidade que nos lembra de quanto dizia Elisée Reclus ‘não há sequer um acontecimento que não seja duplo’ o que torna impossível julgar os fatos em blocos. E não apenas os fatos, mas as pessoas, as ideias e muito mais. Inclusive este livro.

A sociedade de Anarres é uma projeção impecável de todos os valores, principios e métodos originados pela teoria e as ações de anarquistas do nosso mundo: de cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas necessidades. A habilidade de Ursula em construir mundos e povos afinal é bastante destacada em toda sua obra, e nessa não poderia deixar de ser diferent

Vale destacar uma outra dualidade presente no livro, embora mais sutil: o idealismo utópico dos primeiros colonos (que inventaram uma nova língua para que não tivessem que carregar consigo absolutamente nada do mundo que deixavam para trás e seus traçoes de exploração) e o absoluto pragmatismo da sociedade que se originou (onde um computador designa os nomes das pessoas, evitando assim repetições).

Ambos elementos porém – idealismo e pragmatismo – não se contrapõe, não é uma dialética ou um chavão do tipo ‘onde há luz há trevas’. Não são uma contradição. Quase uma imagem da militância anarquista quando colocada frente às questões.

O problema em Anarres é outro, é o muro. Para se defender de qualquer ataque dos capitalistas e centralistas de Urras, os colonos instituiram a proibição de entrada para qualquer elemento extrangeiro. Fecharam-se e isolaram-se completamente, estagnaram. E com a estagnação, forma-se a acomodação, o instinto pela conservação das coisas que em última análise leva à criação de um certo burocratismo e a pequenos e imperceptíveis nichos de poder.

Nessa metáfora podemos enxergar dois elementos do nosso mundo. O primeiro é de âmbito histórico-arqueológico-antropológico e diz respeito a como podemos explicar que após 195 mil anos de sociedades igualitárias os grupos humanos tenham começado a desenvolver autoridades centrais, acumulação de riquezas, exploração do trabalho, patriarcado, resumindo: dominação. Frente a novas situações e desafios, muitas sociedades acabaram encontrado um certo limite e engessadas pela conservação acabaram dando margem para que pequenos grupos começassem a se articular para propor novas soluções pra enfrentar as novas situações que se apresentavam (como crescimento demográfico), o que aos poucos foi gerando as mudanças que nós enxergamos na escala dos séculos.

Esse impulso à conservação não é privilégio da direita conservadora, é algo que faz parte dos grupos humanos, e até dos indivíduos. Somos seres que buscam repetir sempre seus hábitos, romper com eles costuma causar desconforto. Eis o segundo âmbito, mais político-militante, a estagnação na qual podem cair os movimentos de oposição ao status quo. Se olharmos para nossas organizações, movimentos e teorias podemos enxergar ao nosso entorno um muro. É um muro baixo, pequeno, simbólico, como o de Anarres. De um lado esse muro contorna a sociedade opressiva, protege dela e deixa Anarres livre, mas de outro lado esse muro circunda, isola como uma grande prisão, a sociedade anarco-comunista do restante do universo. Assim é com o movimento libertário, protegido e isolado, acomodado com seu muro.

E no nosso presente não há como negar a validade dessa metáfora para descrever o estado das organizações e movimentos de esquerda. Em parte esse muro é sustentado pelo bloqueio dos proprietários, dos urrastis, mas deve-se admitir que a militância também contribui significativamente para erguer e sustentar esse muro, mesmo que de maneira não intencional. Acostumada demais a um certo vocabulário, a esquerda encontra sérias dificuldades pra se expressar pra fora dele, e nessa frustração acaba se fechando e se isolando em si mesma. Erguendo um muro, primeiro como proteção e mecanismo de defesa, e logo como a própria prisão.

Lá pro final do livro, durante uma greve geral em Urras, Shevek pronuncia um discurso muito significativo em que afirma que “a revolução está em vocês ou não está em lugar nenhum”. O método corriqueiro difuso nos ambientes militantes de classificação imediata numa estante de ideologias das coisas sem sequer escutá-las, logo rejeitaria essa frase como individualista ou algo assim. E na verdade foi exatamente isso que eu fiz na minha primeira leitura. Só que ao reler o livro depois de um tempo, de novo esbarrei nessa questão, mas dessa vez parei mesmo pra refletir, e então que fui entendendo mais profundamente seu significado.

Elisée Reclus em “A Evolução, a Revolução e o Ideal Anarquista” diz o seguinte: O período do puro instinto está agora ultrapassado: as revoluções não se farão mais ao acaso, porque as evoluções são cada vez mais conscientes e refletidas (…) Nenhuma revolução pode ser feita sem prévia evolução (…) Já não basta, portanto, repetir as velhas fórmulas (…) e lançar gritos de guerra, fazendo estalar bandeiras ao vento. A dignidade do cidadão pode exigir dele, em tal ou qual conjuntura, que ele erga barricadas e que defenda sua terra, sua cidade ou sua liberdade; mas que ele não pense resolver a mínima questão pelo acaso das balas. É nas cabeças e nos corações que as transformações devem realizar-se, antes de estender os músculos e transforma-se em fenômenos históricos.

Ao colocar as coisas nestes termos o discurso de Shevek assume um caráter coerente com o resto do livro, e ao mesmo tempo ‘dobra o tamanho’ da nossa percepção militante. Dá voz clara a uma percepção difusa em quase todos e todas que lutam, dos limites que enfrentamos e ao mesmo tempo da dimensão radical de nossa tarefa.

Toda revolução tem seu dia seguinte, afirmava Reclus. Assim como também tem seu dia anterior, tanto é que esse é o título (O Dia Anterior à Revolução) de um conto de Ursula em que ela conta um dia da vida da velhice de Odo, a grande líder do movimento anarquista insurrecional em Urras e cujas idéias dão origem a Anarres. E não passa de uma idosa comum:

Nunca havia temido ou desprezado a cidade. Era sua terra natal. Não existiriam mais submundos como aquele uma vez que a revolução tivesse vencido. Mas a miséria permaneceria. Haveria miséria, desperdício, crueldade. Ela nunca pretendera mudar a condição humana, ser a mamãe que remove ou carrega todas as agruras da vida de seus pequeninos para que não se machuquem. Tudo menos isso. Enquanto as pessoas pudessem escolher, isso não era mais problema seu, se depois morariam em esgotos e beberiam inseticidas. Desde que isso não fosse assunto de negócios, uma fonte de lucro e um meio de poder para terceiros. Coisas, essas que talvez ela tivesse intuído antes de saber algo preciso. Antes de escrever seu primeiro panfleto, antes de deixar Parheo, antes de saber o significado de “capital”, antes de cruzar os confins da Rua da Abundância onde brincava com outras crianças de seis anos descansando os joelhos machucados no chão, ela já sabia tudo isso: que ela e as outras crianças e seus pais e os pais de seus pais e os bêbados e as prostitutas e todo o povo da Rua da Abundância estavam no fundo de algo, eram a base, a realidade, o surgimento. Mas nenhum daqueles que pensava ser feito de um material mais nobre do que o barro estava disposto a entender. Agora Laia, água em busca de equilíbrio, lama sobre lama, descia pesadamente pela rua suja e barulhenta, e se sentia à vontade em toda a fraqueza obscena de sua velhice. As prostitutas sonolentas com o penteado laqueado todo torto e prestes a se desfazer, a velha vesga que gritava cansada os nomes das suas verduras, o mendigo idiota que tentava esbofetear as moscas – eram os seus concidadãos. Se pareciam com ela, em sua tristeza, em sua repulsa, pequenez, desprezo, obscenidade. Eram seus irmãos, seu povo.

Infelizmente há pessoas que acreditam poder controlar a transformação social a partir de suas mentes geniais, desejam dominá-la e possuí-la, como se fosse um objeto, uma transação comercial ou um plano elaborado por uma organização política. Muitas palavras bonitas são escritas, notas que chegam a assemelhar-se a uma lista de compras de todas as opressões a se derrubar, concepções de luta que são repetidas até se tornarem um mantra.

E nessa estagnação podemos verificar a origem em germe de uma certa forma de institucionalização da maneira de se fazer as coisas. E para Elisée Reclus todas as instituições humanas, todos os organismos sociais que procuram manter-se como são, sem mudança, devem, em virtude mesmo de sua imutabilidade, gerar conservadores. Mesmo que se declarem originárias de uma revolução popular, nem por isso são menos destinadas, em razão da rigidez de seus estatutos, a mumificar as ideias, suprimir as liberdades e as iniciativas: para isso, basta que elas durem.

Mas a estagnação, o comodismo e esse processo que assistimos em Anarres de uma proto-institucionalização, tem como vetor fundamental as relações informais de afinidade que terminam por colonizar espaços e instâncias coletivas. Engana-se quem acha que basta uma estrutura organizacional para impedir a formação dessa tirania, por mais que seja algo importante não é suficiente, precisa de uma ética solidificada nos sujeitos. Como adverte Reclus, é muito fácil que esses processos apareçam mascarados e na aparência apresentando nobres intenções: é preciso desconfiar não apenas do poder já constituído, mas também daquele que está em germe. É igualmente importante examinar com cuidado o que significam na prática das coisas as palavras de aparência anódina ou mesmo sedutora.

No final do livro passamos a entender o subtitulo ‘Uma ambígua utopia‘, mas se Shevek não abandona Anarres, não há motivos para que façamos o mesmo. A viagem de Shevek foi impulsionada pelo Sindicato da Iniciativa, uma associação que reúne outras pessoas em Anarres que querem “dar uma sacudida nas coisas, agitar, romper certos hábitos, fazer as pessoas questionarem. A se comportarem como anarquistas”. Mas não são uma facção, não estão disputando nada com ninguém, não renegam em nenhum momento sua sociedade, sua história e toda a trajetória do odonismo. Se entendem como parte integral de Anarres, são aquilo que Reclus chama de evolucionistas, buscam estimular o desenvolvimento de toda a sociedade, não pela imposição da força – totalmente sem sentido em um ambiente anarquista – mas pelo calmo e lento caminhar coletivo, na eterna construção dos sujeitos revolucionários.

Os Despossuídos é mais do que um romance, é um material de formação fundamental para o movimento libertário. Mais do que tudo o livro fala à nossos contextos de luta, alinha nossos sonhos com a nossa realidade, e todas as contradições e ambiguidades que emergem do estilo militante, ao mesmo tempo que é uma ode à anarquia, na qual renovar a esperança e o compromisso na luta por um mundo melhor. É preciso romper esse muro, o último muro a ser enfrentado pelo anarquismo. A revolução é real apenas quando passa através de nós como um rio, se enraiza e se difunde sem pedir nada em troca, despossuída.

Livio