O que esperar da CPI da pandemia?

Artigo de opinião por Melka Barros *

O que é uma CPI?

Comissão Parlamentar de Inquérito é um mecanismo de fiscalização previsto na Constituição Federal, instaurado pelo poder legislativo para a apuração de fato determinado e por prazo certo. No âmbito federal, o poder legislativo é composto pela Câmara dos Deputados e o Senado Federal. A CPI pode ser instaurada por cada um desses órgãos separadamente ou em conjunto, quando será chamada de CPMI.

Para se abrir uma CPI é necessário reunir as assinaturas de 1/3 dos integrantes da casa legislativa, indicar um fato determinado a ser apurado e definir o prazo certo para duração. No caso da CPI da Covid-19, o objetivo é investigar se houve ação ou omissão do governo federal no enfrentamento à pandemia e o uso por estados e municípios de verba federal. As conclusões desta apuração podem ser encaminhadas ao Ministério Público para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.

O atraso e a insuficiência da CPI para enfrentar a pandemia.

É inegável que o Brasil virou o novo epicentro da pandemia na América. A ausência de garantia de renda digna para a população torna a ideia de isolamento rígido impraticável e a insuficiência de vacinas transforma o país em um laboratório a céu aberto para o surgimento de novas variantes.

É bom lembrar que mesmo o vírus podendo atingir a todos, com a evolução da doença no país, os dados confirmam que a população mais afetada em número de infeções e morte são pobres e pretos/as. São eles/as que estão na maioria das funções de linha de frente do combate ao novo coronavirus (enfermeiras, auxiliares de enfermagem e de serviços gerais de hospitais e upas, agentes de saúde e de endemias, motoristas de ambulâncias), nos caixas de supermercados e nos serviços informais de entrega por aplicativo. São trabalhadores/as que não puderam deixar de trabalhar e que, junto as suas famílias, têm acesso precário ao sistema de saúde.

A pandemia aumentou a pobreza e 55,2% dos lares brasileiros, ou o correspondente a 116,8 milhões de pessoas, conviveu com algum grau de insegurança alimentar no final de 2020. No momento em que escrevo esse texto, já foram notificadas ao ministério da saúde, desde o início da pandemia mais de 430 mil mortes por coronavírus. Dados da pesquisa nacional por amostras de domicílio (PNAD Contínua) aponta que o Brasil registrou número recorde de desempregados em 2020: 13,8 milhões e 38 milhões de trabalhadores informais, além da precarização de hospitais e outros equipamentos de saúde em todo o país.

De partida é preciso afirmar: nenhuma crise social, política ou econômica irá se resolver com a CPI instaurada no mês passado. Ela não pretende discutir o aumento do auxílio emergencial, a valorização do Sistema Único de Saúde, o desemprego, a fome, as operações policiais nas favelas, desocupações e reintegrações de posse durante a pandemia.

Por outro lado, mesmo com atraso, em quinze dias de CPI vários outros assuntos importantes vieram à tona: discussões que giram em torno do negacionismo do presidente Bolsonaro e seus ministros; da produção e prescrição irregular e indiscriminada de cloroquina, ivermectina e outros remédios do fantasioso “kit covid” pelos veículos da mídia institucional e por figuras públicas do governo, mesmo sem fundamento científico para tanto; a negação da compra de vacinas no momento em que foram oferecidas; as tentativas deliberadas e conscientes de impulsionar a imunidade de rebanho em Manaus e a quebra de patentes dos imunizantes.  

O que também se pode esperar desta CPI é uma troca de peças no tabuleiro dos de cima que, como efeito dominó, atinge, inevitavelmente, a vida da população. Depoimentos de três dos quatro ministros da saúde, do presidente da agência nacional de vigilância sanitária e do titular da secretaria da comunicação do governo, assim como as intervenções dos senadores, dividem-se, até o momento, entre blindar o presidente e seu gabinete ou denunciá-los.

É difícil acreditar que o objetivo da CPI é a provocação de impeachment do presidente por crimes de responsabilidade, como se já não houvesse o suficiente para tanto. Não era necessário abrir uma CPI para isso. No entanto, essa não é uma hipótese que deve ser desconsiderada, pois mesmo que não seja o objetivo a opção Mourão é um fantasma que garante a continuação de um governo militarista e neoliberal.

Outro cenário para a CPI seria apodrecer ainda mais a imagem de Bolsonaro, criar instabilidade, provocar a saída do centrão, que é sempre o primeiro a abandonar o barco, e apontar como solução uma aliança com o que eles chamam de “direita moderada”, fugindo da figura de Lula, que traz consigo o antipetismo, ou de Bolsonaro, que já acompanha uma rejeição considerável. Entretanto, essa é uma estratégia que fica prejudicada pela última pesquisa Datafolha que aponta Dória, Mandetta e Sergio Moro com porcentagens insignificantes.  

Por fim, é possível um cenário de tensão entre poderes, com Bolsonaro saindo do discurso e passando à prática de enfrentar o legislativo e o executivo. Uma escalada de autoritarismo do presidente que de tempos em tempos flerta com as forças armadas e testa limites em paralisações das polícias militares nos estados.

A condução da pandemia pelo governo Bolsonaro foi catastrófica e nos fez sentir a política de morte em todos os sentidos: no estado policial de ajuste e na crise sanitária. O enfrentamento à pandemia é uma pauta humanitária e, no Brasil, passa pela valorização do SUS e a garantia de renda digna à população, que não são pautas da CPI, mas podem e devem ser pautas diárias na construção dos movimentos sociais, nos nossos territórios e nos sindicatos.

* Melka Barros é auditora fiscal de tributos, militante de Direitos Humanos e da luta pelos territórios de povos tradicionais no Ceará.