“Nós estamos vendo a boiada passar”: entrevista com a Brigada Autônoma

Foto de capa: Facebook – Brigada Autônoma junto com a Brigada Lucas Eduardo Martins.

Os biomas brasileiros ardem em chamas. Em outubro, o Pantanal foi vítima da maior queimada já registrada neste bioma para este mês. Tempos atrás, era a Amazônia que ardia em chamas. Todos os biomas do território brasileiro têm sofrido em maior ou menor grau uma intensificação dos ataques e saqueios por parte do agronegócio e seu principal representante político, o ministro do meio ambiente, Ricardo “Passa Boiada” Salles, do Partido Novo. Mas com auto-organização e solidariedade somos capazes de resistir a tudo isso. O Repórter Popular entrevistou a Brigada Autônoma, coletivo de brigadistas anarquistas e antifascistas que se formou em 2016 para oferecer uma resposta ao ataque aos ecossistemas e populações tradicionais. A Brigada Autônoma, que já atuou em combate a incêndios no Cerrado, na Chapada dos Veadeiros, em ações em busca e resgate no crime socioambiental da Vale em Brumadinho, agora concentra esforços no combate a incêndios, resgate de animais e abastecimento popular no Pantanal matogrossense. Esta brigada, assim como a Brigada Lucas Eduardo Martins, é composta por militantes que estão lá voluntariamente. Os ajude a permanecer atuando, contribua com a campanha de financiamento coletivo da Brigada Autônoma.

 

1) Como surgiu a Brigada Autônoma? Existem outros grupos de voluntários trabalhando no combate ao fogo. Como é a relação entre os grupos?

A Brigada Autônoma surgiu como uma ideia, após um de nossos fundadores participar de alguns combates a incêndios, como por exemplo na Chapada dos Veadeiros, em algumas situações de tragédia como Brumadinho, e algumas outras situações, após vermos a necessidade da população se organizar em estruturas de defesa. Teve situações, em que teve auxílio dos bombeiros militares, mas o trabalho, o combate às chamas,  só foi bem sucedido graças à união da sociedade civil mesmo. Então, a Brigada Autônoma foi criada devido à necessidade de existir uma unidade de segurança do povo para o povo. Existem outros grupos voluntários atuantes, esses grupos com diversas posições políticas. Mesmo que haja discordância em algumas ideias, na hora do combate é um organismo só, todo mundo junto lutando no combate ao incêndio, ou em busca e resgate, entre outras situações.

2) Quais os locais de atuação nas queimadas e quais os tipos de atividades realizadas?

Os locais são os mais diversos possíveis. Aqui no Brasil a gente tem uma área muito grande de mata. A gente tem uma diversidade de biomas, cada bioma com sua peculiaridade, alguns com risco maior de fogo, outros com risco um pouco menor, mas em algum nível todos são atingidos pelo fator fogo. E a atuação da Brigada é uma atuação bem abrangente, varia desde combate a incêndio, prevenção, distribuição de alimento para comunidades. Logo após a queimada surgem situações, como a fome cinzenta, que é a fome que assola todos os animais, pela falta de alimento, por ter sido queimado tudo ali onde eles se alimentavam e viviam, então são feitas ilhas de alimentação. Às vezes a gente auxilia outros grupos que já vêm fazendo esse trabalho nas regiões, e as áreas de atuação diferem muito, onde tenha prioridade de atendimento a gente vai estar lá fazendo esse auxílio em diversas frentes, como agora foi no Pantanal. Fomos em duas brigadas para o Pantanal, a Brigada Autônoma e a Brigada Lucas Eduardo Martins, formada recentemente. Essas frentes se dividiram, desde resgate de animais feridos, ilhas de alimentação, combate a incêndios, distribuição de cesta básica em comunidades. É um trabalho bastante abrangente, que a gente pretende ampliar cada vez mais, saindo só da área de atuação do fogo, e atuando em diversos tipos de situações e necessidades.

 

3) Até o momento estima-se que 23 mil km² foram consumidos pelo fogo. Podem relatar as situações mais marcantes com que vocês se depararam durante a atuação de vocês?

Uma grande área já foi consumida pelas chamas, e continua sendo. As chuvas que ocorreram foram insuficientes. A gente tem diversos fatores lá que tornam o ambiente propício, nesse momento ainda mais, então acaba se tornando muito arriscado o combate naquelas regiões. Muitas regiões acessíveis apenas por helicóptero, por barco. É um ambiente bastante hostil por parte dos fazendeiros também, que muitas vezes não permitem o combate ao incêndio em suas terras, visando o aumento de pastagem e etc. Para eles é bem cômoda a situação. Uma das coisas mais marcantes que a gente viveu lá, além das chamas, de resgate de animais feridos, foi conversar com a população e ver como eles são atingidos por tudo isso. População indígena perdendo suas terras, suas plantações por conta da queimada. Foram muitas situações de pessoas sofrendo por não ter o que comer pós-fogo, e também marcou muito ver toda essa mata queimando e a gente ali no meio daqueles paredões de fogo, enfrentando tudo aquilo. Eu creio que é difícil definir o que foi mais ou menos marcante, creio que a situação toda do Pantanal, tanto o fogo, quanto animais morrendo da seca, os bois queimados, tudo isso, esse conjunto de situações tornou a situação do Pantanal marcante. A gente viu muita coisa ali.

4) Em algumas postagens, vocês se referem sobre como a situação não é apenas sobre as queimadas, mas é também uma questão política. Como vocês enxergam essa questão?

A gente acredita que tudo o que a gente faz no nosso dia a dia é uma questão política. Tudo influencia. A gente foi para lá, muito mais do que para apagar fogo, para denunciar a verdadeira situação do Pantanal e do Brasil perante este aumento histórico das queimada. Nós vemos uma negligência do poder estatal quanto a isso, negligenciando ajuda, ajudando o mínimo que pode, declarando que não tem verba para isso. Nós nos deparamos com denúncias, pela própria população, de fazendeiros ateando fogo para aumentar suas terras. Lá, a população sabe muito bem quem são os fazendeiros. A gente vê falta de fiscalização do governo. Quando o ministro Salles disse que ia passar a boiada, nós estamos vendo a boiada passar, a legislação ambiental diminuindo, o desmonte dos órgãos públicos como IBAMA e ICMBio. Nós estivemos um dia no quartel dos bombeiros, dormimos por lá, e eles diziam que o governo não está oferecendo materiais apropriados de trabalho. Nós combatemos ao lado de membros da defesa civil que estavam sem EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), doamos EPIs para eles conseguirem trabalhar de maneira um pouco mais segura. Eles estão com salários atrasados. Nós combatemos lá nessa região. Então tudo é uma questão política, desde como é feito esse trabalho de combate pelo Estado, até sua negligência, e as atitudes das pessoas. Estávamos ali para fazer um trabalho que vai muito além de apagar fogo, nós fomos também trazer todas essas questões de como o Pantanal e outros biomas vêm sofrendo.

 

5) Poderiam relatar um pouco como é a relação com as populações locais?

As relações com as populações locais são diversas, tem lugares em que fomos muito bem recebidos, que quando viram que éramos brigadistas, a população ofereceu refrigerante e alimentos para nós. Houve pessoas que nos ajudaram com óleo para lubrificar as bombas costais para nós podermos continuar trabalhando com equipamento seguro e com a devida manutenção. Houve lugares com olhares estranhos para nós, e isso também é uma questão política, porque depende do interesse dessas pessoas no Pantanal. Pessoas que realmente têm interesse na natureza e em preservação, irão nos tratar bem e irão valorizar nosso trabalho. Se for pessoas que lucram com a degradação ambiental, essas pessoas com certeza não vão nos querer por lá, como por exemplo, muitas não quiseram, como fazendeiros e etc. 

 

6) Qual a relação de vocês com os órgãos oficiais do governo no combate às queimadas? Há cooperação com funcionários do Ibama?

As relações com órgãos governamentais são diversas. Temos que pontuar que dentro desses órgãos existem diversos tipos de pessoas, pessoas realmente interessadas em apagar e lidar com a situação, que tentam mudar a situação, e pessoas que não estão totalmente interessadas. Essa diversidade de pessoas dentro do mesmo órgão pode proporcionar diversos tipos de reações em relação a nós. Em algumas partes tivemos facilidade de trabalhar com o corpo de bombeiros, agentes do IBAMA, do ICMbio e etc. Em outras, tivemos dificuldades com algumas pessoas desses grupos, nesse caso acho complicado a gente falar de um órgão como um todo. Eu creio que institucionalmente os órgãos estão sendo aparelhados e isso gera dificuldades no geral. No momento do combate, vi empenho das pessoas. Porém, o número de pessoas empenhadas, eu considero relativamente baixo, pelo tamanho e gravidade da situação.

 

7) Outros grupos libertários, comunistas e ambientalistas do exterior têm prestado apoio e solidariedade à Brigada. Poderiam contar um pouco pra nós sobre como se deu esse apoio?

Sim, temos recebido apoio internacional de grupos libertários, antifascistas, comunistas e etc. Esse apoio se deu pela visibilidade do nosso trabalho, principalmente no Pantanal, após companheiros do Brasil compartilharem bastante nossas ações, eles visualizaram e ofereceram apoio. Esse apoio se dá através de postagens, matérias jornalísticas e algumas doações, que têm sido revertidas em EPIs e em cursos, especializações para nossos combatentes. Os cursos são tanto para bombeiro civil, instrutor de bombeiro civil, quanto em outras áreas como busca e resgate em estruturas colapsadas, resgate em altura e outras áreas para podermos abranger mais ações. E em relação a isso, ainda estamos precisando de muitas doações, por se tratar de um projeto que não é barato. Ainda temos muitos equipamentos para comprar, e é primordial que tanto internacional quanto nacionalmente quem acredita em nosso trabalho continue nos apoiando para conseguirmos crescer e dar continuidade ao nosso trabalho.

 

8) Enquanto Brigada, como vocês percebem seu papel na luta popular?

Como Brigada vemos um papel muito importante, um papel socioambiental que leva educação, como no tema de prevenção a incêndios, para áreas periféricas. Pretendemos fazer uma unidade educativa para estar mais próximos dessas áreas tanto em momentos de combate, quanto entendendo suas necessidades e tentando levar o máximo de soluções que pudermos. A esses lugares que são abandonados pelo Estado, territórios indígenas e periferias, além de trazer ao povo a ideia de autogestão e apoio mútuo. Temos um papel que vai muito além de apagar fogo. Também pretendemos criar uma rede de brigadas, todas baseadas na autogestão e no apoio mútuo. Uma rede de proteção popular para atuar em várias frentes, mas isso virá com o tempo. No momento nossas prioridades são equipar as duas brigadas (Brigada Lucas Eduardo Martins e Brigada Autônoma) para conseguir expandir essa rede com maior qualidade.

 

9) Como vocês enxergam o cenário futuro?

O cenário piorou com o passar dos tempos. Tanto com a questão política, com esses governantes que não lidam realmente com o meio ambiente. A gente já nota uma piora com o governo Bolsonaro, com o ministro do meio ambiente, o (Ricardo) Salles, a ministra da agricultura, e outras questões que têm possibilitado o aumento dessas queimadas, por conta da negligência pública, e também a gente percebe certos apoios a essas práticas. Então, a gente pretende cada vez se preparar mais pra enfrentar essas situações. A gente vem fazendo cursos de especialização tanto na questão de busca e resgate em estruturas colapsadas, bombeiro civil, técnicas de combate a incêndio, e outras coisas que possam ser úteis, que a gente possa aplicar daqui pra frente. Algumas das técnicas a gente já vem aplicando em algumas situações, mas a gente pretende ampliar. Outra questão é a questão climática, com o aquecimento global, a gente vem notando um aumento da temperatura, um clima bem irregular, e isso acaba sendo um fator pra desastres ambientais. A gente pretende se preparar cada vez mais pra isso, e uma das maiores necessidades nossas, hoje, é a compra de equipamento. A gente precisa de um apoio grande, porque são equipamento caros, e isso é complicado. Pras duas brigadas que existem hoje aqui em São Paulo, que fazem parte dessa rede que estamos estruturando, a gente precisa de um valor de mais ou menos cento e sessenta mil reais para cada brigada, pra compra de uma caminhonete pra cada uma, e outros materiais de atendimento hospitalar, de combate a incêndio, equipamentos de proteção individual e outras coisas. É um valor muito alto, mas aos poucos a gente tá conseguindo uma ou outra coisa, investindo em cursos, e a gente precisa do apoio da população pra gente continuar a crescer e ampliar essas ações.

Comentário geral:

Eu gostaria de pontuar que essa Brigada surgiu como uma ideia minha, mas hoje ela conta não apenas comigo Alex. Eu não sou o foco, o foco é a brigada, que já tem diversos membros se especializando e isso é de grande orgulho, ver esse crescimento. Hoje trata-se da Brigada Autônoma, um organismo, que vai além do que eu tinha previsto inicialmente. Essa ideia cresceu, vem se desenvolvendo e gerando frutos, e todos os que têm acreditado no nosso trabalho são parte disso, todos são importantes. Viemos para quebrar estigmas de lideranças e hierarquias. Através de nossos cursos e especializações, viemos também trazer oportunidades para nossos membros se reinserirem no mercado de trabalho em outras profissões, gerando novas chances para essas pessoas. E também trazer à tona que para ser bombeiro, socorrista, você não precisa estar diretamente atrelado a alguma unidade militar, ou ao governo de um modo geral. Eu posso ser socorrista, outras pessoas podem ser, o jovem da periferia pode ser socorrista. Nós viemos apoiar muito mais do que apagar fogo, mas apoiar sonhos, que todas crianças têm, ou quase todas, o sonho de ser bombeiro, médico. Muito além de apagar fogo, a gente veio reavivar sonhos.