Entre a não ficção e a ficção, a construção de uma identidade de mulher em Jogo de cena (2007), de Eduardo Coutinho

Jogo de cena é o melhor documentarista do país jogando dialeticamente entre ficção e não ficção, construindo uma identidade de mulher[1]. O longa é composto só por mulheres, dirigido por um homem, que traz histórias reais ou inventadas contadas por atrizes e por mulheres comuns. ‘Comuns’ pode soar pejorativo, mas o utilizo para distinguir das mulheres famosas, já que isso tem implicação no decorrer do documentário.

De primeira vemos uma mulher desconhecida contando uma história. Dando continuidade à cena, Andréa Beltrão, que prontamente reconhecemos como atriz, interpreta o texto anterior, seguindo de onde a mulher havia sido interrompida pelo corte da montagem. Isso causa uma estranheza e chama atenção para uma coisa: o que estamos vendo é um filme, ficção, não a vida real[2]. Embora muito se fale no documentário como a filmagem do real, da verdade (de maneira equivocada, já que o documentário, tanto quanto a História, por exemplo, são narrativas construídas, discursos vencedores, pontos de vista), Coutinho costumava dizer que seus filmes mostram a verdade da filmagem.

O filme seguirá dessa maneira, sempre suscitando dúvidas e causando embaraço no/a telespectador/a cada vez que descobrimos ser uma atriz, logo uma atuação, e não a sempre esperada vida real. E esse embaraço em específico é causado porque Coutinho, de maneira inteligente, utiliza não só atrizes famosas, mas também amadoras e iniciantes. Mais de uma vez o relato é construído até o fim e então a revelação ao final derruba o castelo de cartas edificado com tanto cuidado. Isso cria uma sensação incomoda de que nossa vista está sempre turva, tapada pelo véu invisível da representação. (Ou, como disse Schwarz em relação a Estorvo: uma visão opaca pelos logotipos.)[3]

Ao opor sistematicamente mulheres famosas e bem sucedidas a mulheres comuns e atrizes desconhecidas, Coutinho aborda um tema espinhoso (por ser homem): a construção do ser mulher; a responsabilidade de ser bem sucedida em contraste com a vida suada da maioria das mulheres, que trabalham muito, ganham pouco, criam filhos sozinhas e são vítimas de assédio. Nesse último ponto, a comparação às famosas se aproxima, mas sempre com ressalvas ao se fazer o recorte de classe.

Não seguirei aqui pela mesma razão que disse ser espinhoso para o diretor. Levando o princípio do filme para uma instância mais ampla, Coutinho fala sobre a dificuldade de sermos nós mesmos enquanto há uma identidade moldável disponível a todo instante na tevê, sob a figura reificada dos artistas famosos. É de interesse do capitalismo a uniformidade. A mercadoria não apresenta contradições nem diferenças. Essas são mínimas para pensarmos que se trata de objetos diferentes quando na verdade é tudo a mesma coisa.

É um debate longo e apresentei só algumas coisas para fomentá-lo. Jogo de cena é incrível, de uma capacidade de síntese extraordinária. 2007, capitalismo pré-crise, depois tudo iria piorar. Coutinho condensa muitas coisas a um objeto estético de primeiríssimo nível. Se trata de como atuar, mas principalmente de como viver.

Rodrigo Mendes

 

[1] Ao ver o filme lembrei de um poema da grande Ana Martins Marques, que também parte da ideia de construir uma identidade de mulher em meio a tensões condicionadas pela sociedade patriarcal (apesar do hermetismo):

entre a casa
e o acaso

entre a jura
e os jogos

entre a volta
e as voltas

a morada
e o amor

penélopes
e circes

entre a ilha
e o ir-se

(MARQUES, A. M. Da arte das armadilhas. São Paulo: Cia. das Letras, 2011.)

[2] Falo da construção narrativa que por si só é antagônica à realidade empírica. Tentarei argumentar que sim, Coutinho tensiona a vida real, mas dentro da narrativa criada ficcionalmente.

[3] SCHWARZ, Roberto. “Um romance de Chico Buarque” in Sequências brasileiras.