Caso do assassinato de Moïse Mugenyi pode estar tendo interferência das milícias

Do Repórter Popular – Rio de Janeiro

No último 24 de janeiro, o imigrante refugiado congolês Moïse Mugenyi foi brutalmente assassinado na praia da Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, pelos gestores e funcionários do quiosque Tropicália, em que trabalhava informalmente como atendente. Moïse buscou naquele dia cobrar o valor de duas diárias trabalhadas no quiosque que não haviam lhe sido pagas, ocasião em que foi atacado e agredido por cerca de 15 minutos, ficando imobilizado por uma gravata no pescoço, tendo as mãos amarradas e sendo alvo de socos, chutes e golpes de bastão por parte de 5 homens, mesmo depois de desacordado, até que veio a falecer. A causa da morte verificada no IML foi traumatismo no tórax, com contusão pulmonar causada por ação contundente. O corpo de Moïse foi encontrado ainda amarrado e já sem vida próximo ao estabelecimento, sendo a família informada sobre sua morte somente 12 horas depois do ocorrido.

Apesar da grande repercussão midiática, o episódio ocorrido na Barra da Tijuca — território de alto poder aquisitivo e que conta com atuação de milícias — tem contado com diversas aparentes tentativas de acobertamento por parte das autoridades, o que tem suscitado questionamentos sobre possível interferência das milícias no caso. Em primeiro lugar, a Polícia Civil optou por não identificar o dono do quiosque Tropicália, cuja identidade, Carlos Fábio da Silva Muzi, só foi divulgada ontem (02/02), mais de uma semana depois do início das investigações, sendo que funcionários do quiosque envolvidos no crime já haviam sido identificados e tido a identidade revelada. Atualmente, já são três os identificados como autores do crime: Fábio Pirineus da Silva, Aleson Cristiano de Oliveira Fonseca e Brendon Alexander Luz da Silva, todos que, segundo o proprietário, prestavam serviços a quiosques da região informalmente. O dono do quiosque Biruta, ao lado do Tropicália, em que Aleson trabalhava e em que Moïse também já havia trabalhado, tem como proprietário um policial militar, Alauir Mattos de Faria.

Também gerou questionamentos o fato de que um dos autores do assassinato entrou em contato anteontem (01/02) com o SBT e alegou que já tinha tentado se entregar duas vezes à Delegacia, mas que os policiais teriam se recusado a registrar seu depoimento porque “não tinha nada” contra ele. No mais, repercutiu na internet imagens desta semana de uma viatura da Polícia Militar em frente ao quiosque fechado, como se estivesse fazendo a segurança do local.

Independente do nível de interferência das milícias atuantes na região no caso, o trágico episódio é bem ilustrativo da amplitude do fenômeno das milícias nos territórios, cuja capilaridade social se complexifica para além do mero controle armado pelos paramilitares. Via de regra, quase qualquer comércio presente nesses territórios controlados por milicianos deve contar com algum nível de aval destes, o que um cria um ambiente de extralegalidade em que a lógica e a “justiça” miliciana podem ser aplicáveis mesmo pelas próprias mãos dos comerciantes e seus funcionários, com as milícias consequentemente cumprindo seu papel para atuar dentro do Estado — no qual as milícias são intrinsecamente presentes — de modo a abafar o caso.

Racismo estrutural

Esse caso se insere em uma lista de violências perpetradas pelo Estado e empresários, que em 2020 bateu recorde de assassinatos pelas mãos das forças policiais, com 6416 pessoas tendo sido mortas. Dessas, 80% são pessoas negras, como Moïse Mugenyi, podendo o mesmo perfil ser encontrado entre pessoas encarceiradas – 66,7% pessoas negras – e pessoas desempregadas, em situação de trabalho precarizado, superexploração, baixa ou nenhuma remuneração; principalmente após a Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) aprovada por Michel Temer. Foi nessa Reforma que se criou a imagem do acordado sobre o legislado, ou seja, de que os direitos trabalhistas, as condições de trabalho e o próprio regime de pagamento devem ser acordados diretamente entre patrões e trabalhadores. Em um momento  em que há aproximadamente 14 milhões de desempregados, a margem de negociação dos trabalhadores deixa de existir e essa Reforma torna-se uma ferramenta de violência contínua, que obriga a aceitar péssimas condições e baixos salários para receber algum salário que seja. 

O caso de  Moïse Mugenyi é mais um que expõe a faceta do capitalismo que tem no racismo um eixo estrutural de sua existência, assim como o recente caso de trabalho escravo da Shox do Brasil Construções, que presta serviço à FAB, em que trabalhadores foram encontrados tendo até de fritar formigas para comer; ou a morte do menino Miguel Otávio, de apenas 9 anos por negligência da patroa de sua mãe. Muitos casos poderiam ser rememorados e todos indicariam a confirmação de que a negociação direta entre trabalhadores – principalmente negros – e patrões favorece apenas os patrões e nos expõe a violência e riscos, podendo, inclusive, nos levar a pagar por nosso trabalho com nossa vida.

 O caso de Moïse, portanto, só terá a devida resposta se a repercussão e a revolta social provocadas continuar crescendo como estão. A família da vítima, a comunidade congolesa local e inúmeros movimentos e coletivos negros estão convocando uma manifestação em frente ao quiosque Tropicália para este sábado, dia 5 de fevereiro, às 10h da manhã.

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