Cabra marcado para morrer: reconstrução de identidade e da História

Em 1964, a UNE Volante, um projeto da União Nacional dos Estudantes (UNE), saía a percorrer o Brasil para fundar Centros de Cultura Popular, os CCP. Esses eram centros de arte popular, no sentido de serem feitas pelos de baixo, pelo povo dentro de sua realidade. Tinham o pensamento de que a arte só é plena quando política, ou seja, não há arte quando esta não se propõe a entender o mundo em que vivemos.

O ano de 1964 não foi escolhido por acaso: em 1962, João Pedro Teixeira, líder camponês no início das Ligas Camponesas, tinha sido assassinado onde morava, na Paraíba (importante lembrar o aumento do número de mortes no campo, atualmente, a serviço do agronegócio). A partir desse fato, a ideia do CPC, com o diretor Eduardo Coutinho à frente, de fazer um filme de ficção sobre o assassinato sendo os atores os próprios moradores do local e amigos de João.

As gravações iniciaram no início do ano no Engenho da Galiléia¹, por ter uma paisagem parecida com Sapé, local onde morava o líder camponês. Só que em abril de 1964 houve o golpe militar, o engenho foi cercado, a filmagem censurada e materiais foram apreendidos, sobrando algumas cópias de fotografias e alguns negativos de filmagem que já haviam sido enviados para edição.

Cabra marcado para morrer, como conhecemos hoje, é de 1984. Em 1981, Coutinho decide retomar, totalmente autônomo (em 64 estava com a UNE, tinha patrocínio governamental para fazer o filme) seu projeto. Cabra marcado é, sem dúvida, um dos maiores filmes brasileiros e sua força reside muito nesse grande espaço de tempo, em que ficam evidentes alguns dos vários problemas que sofremos com o golpe de 64. O filme é atravessado pela história do Brasil e isso causa um impacto nos personagens e no próprio Coutinho que seria impossível desconsiderá-lo.

A reconstrução, dezessete anos depois, não foi só do filme, mas de Elisabete Teixeira, viúva de João Pedro Teixeira que se tornou facilmente a protagonista do filme devido a sua força, silenciada por quase duas décadas. Viveu quase todo o tempo na clandestinidade, mas seguiu resistindo, em um exemplo de luta. Coutinho, ao refazer o filme, afirmava de certa maneira que não devemos esquecer nem perdoar o golpe de 64 e os vinte e um anos que este durou e os problemas que deixou. Elisabete se reencontra com ela mesma, assume seu verdadeiro nome e, ao ressurgir, leva a história do Brasil nas costas, marcada pelo tempo.

Coutinho, ao retomar seu projeto, apresenta algumas partes filmadas dezessete anos antes aos moradores de Galiléia (é um cena linda nas quais eles, muitos já morando em outros lugares, se reencontram e assistem às gravações e se reconhecem uns aos outros); essa cena também demonstra que eles estão jogados pelo país, sem conhecimento de seus colegas, com trabalhos precários, indicando o tamanho do retrocesso que o capitalismo significou para essas pessoas². Depois, parte em busca de Elisabete, protagonista por excelência, e a encontra através de seu filho Abraão. A partir de então se seguem três entrevistas com ela, uma com a presença do filho.

Uma das características que o filme traz é certa polifonia, muitas vozes para contar diferentes histórias e diferentes vivências. Comecemos com Elisabete: suas emoções e sua história, narradas por ela, mudam em função da (o)pressão que seu filho Abraão representa com sua presença. Ele se mete em várias falas e acaba conduzindo, de certa maneira, a entrevista. Em outras duas, ela já sozinha e muito mais à vontade, conta sua trajetória desde antes da morte de seu companheiro até o tempo presente, dezessete anos depois, passando pela clandestinidade, abandono dos filhos e das filhas e a recuperação de sua identidade. Alguns meses depois, Coutinho vai atrás destas e destes espalhados pelo Brasil, continuando assim a multiplicidade de vozes e histórias.

A naturalidade das emoções que a câmera de Coutinho capta transmite uma emoção arrasadora e verdadeira ao passo que contrasta com a frieza e artificialidade das gravações da ficção de 64. Essa câmera é invasiva, e graças a isso temos a exata emoção do presente gravado enquanto gera certa opressão da/o filmada/o. A cena da filha de Elisabete que está morando no Rio e não consegue segurar as lágrimas ao ouvir (o) falar de sua mãe é dura. Mas penso que é interessante demais esse movimento que Coutinho faz de ir atrás e mostrar tudo, porque traz muita veracidade pra história e, de novo, evoca todo um passado de torturas, mortes e violência causado pelo regime militar.

O filme, em toda sua duração, deixa claro seu protagonismo: gente pobre e de luta. No final, Elisabete faz um discurso inspirador, quando fala que enquanto existir fome o povo deve se organizar e lutar. Essa vitalidade e certa alegria pelo fim próximo do regime parecem dar ao filme um tom de esperança. Notemos também que não aparecem no filme as elites dominantes.³ Me parece que o ambiente familiar, sempre com muita gente junto, crianças e tudo mais, cria uma atmosfera agradável e tranquila para as entrevistas, contrapondo as durezas ditas pelas/os entrevistadas/os.

Ao final, a Kombi com os integrantes da equipe vai se distanciando de Elisabete e o filme se encaminha para o final. Ficam os relatos de um passado e presente difíceis de gente trabalhadora que sofreu (e sofre) muito com as condições precárias de vida impostas pelo capitalismo. Fica também o pensamento de que não devemos esquecer o que houve, e que memória é fundamental para que não se enterre o passado sem reconhecer e julgar os envolvidos em torturas e assassinatos. Assim, tem por fim um dos maiores filmes nacionais de nossa história e o início da perpetuação de uma memória de resistência que foi atravessada pela história do Brasil.

Rodrigo Mendes

¹ Engenho que foi exemplo de luta, quando moradores-trabalhores resistiram contra o aumento do foro, tipo de um imposto e, por fim, acabaram por conseguir a posse do lugar para moradia, mesmo que nunca tenham conseguido a escritura do engenho.

² Essa ideia se encontra em um ensaio de Roberto Schwarz sobre o filme, chamado “O fio da meada”.

³ Isso também se encontra no ensaio citado acima, no livro Que horas são?.