Branco sai, preto fica, obra-prima do cinema brasileiro

Dos filmes contemporâneos brasileiros talvez nenhum tenha obtido resultado tão bom, unindo forma estética e radicalidade na denúncia, como Branco sai, Preto fica. O filme de Adirley Queirós (2014) é uma distopia nem tão distópica que funciona como crônica da violência policial-estatal a negros de periferia, aqui com o recorte na antiga Ceilândia[1], em Brasília. Recusa-se a uma abordagem amena e conciliatória e bota o dedo na ferida, construindo um monumento extremamente crítico ao racismo.

A narrativa, no limiar entre documentário e ficção, possui três linhas de tempo: o passado a que se refere e que tem o ponto chave que desencadeia as ações – 05 de março de 1986, quando a polícia invadiu o Quarentão, baile black na Ceilândia[2], e ordenou, em claro racismo, que brancos saíssem e pretos ficassem; na década de 2030, na qual se desenrola o tempo presente e os protagonistas planejam um ataque à cidade de Brasília; na década de 2070, quando Crava-Lanças, agente terceirizado do Estado, volta ao passado para colher provas e processar o governo de lá contra os ataques constantes à população negra[3].

Essa ideia de trabalhar com três linhas temporais e que enfocam a mesma temática sugere uma suspensão do tempo histórico. Não importa para onde olharmos, a situação segue a mesma para os de baixo. Enquanto parece haver essa parada temporal, Marquim, Santana e outros passam a trabalhar juntos em uma tentativa de explodir o centro da cidade com uma bomba de ondas de rádio. Aqui entra um elemento muito criativo de Adirley: é como se a canção popular, feita pelos de baixo, fosse a força que temos para destruir o sistema. Se pensarmos no rap, certamente teremos um consenso de que a destruição da estrutura de sociedade atual, com todas suas opressões, seja de raça ou de classe – aqui em jogo -, está entre os primeiros objetivos. O Racionais já falou que a palavra vale um tiro e que eles são antes de artistas, terroristas.

Branco sai, preto fica, parecido com Cabra marcado para morrer[4], dá protagonismo exclusivo para as/os oprimidos. Não há espaço para as classes dominantes. Lá no filme do Coutinho, isso tem um efeito de esperança e vitalidade[5]. Aqui, acho que faz parecido, além de aumentar a tensão já que acompanhamos sós e diretamente a construção da ação.

Esteticamente é um filme muito bem construído. Com poucos recursos (é perceptível pela simplicidade e criatividade com que foram criados os cenários) faz lembrar de Glauber Rocha e sua clássica frase: “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Além disso, denuncia o pouco investimento em comparação às grandes produções da indústria cultural, aqui no Brasil representada pela Globo Filmes. Assim, faz de sua precariedade orçamentária força estética.

Habilmente, o diretor filma muitos planos na rua, na periferia da cidade, além de gravar os personagens muitas vezes cercados por grades, lembrando o grande problema que é o sistema carcerário no país. A denuncia, lembrando de novo o Racionais, é endereçada a toda sociedade. Crava-lanças, o viajante, em uma grande cena, vocifera xingamentos aos racistas em tom de desabafo, e ao final, virando-se para a câmera, ou seja, para nós, atira. Uma provocação muito bem bolada, visando atingir a todos com seu grito desesperado.

Explodindo literal e metaforicamente no final, ao som da canção muito bem escolhida de Mc Dodô, “Bomba explode na cabeça”, acaba o grande filme de Adirley Queirós. Percebendo detalhadamente as relações sociais no país, dando voz a personagens-reais a partir de uma crítica aguda ao racismo e à violência policial, com muita criatividade de argumento e narrativa, tem fim o filme e início de um marco no cinema brasileiro.

Rodrigo Mendes

[1] Antiga pois o filme trabalha com um futuro próximo, nas décadas de 2030 e 2070.

[2] Aqui é um dos pontos em que a distância de ficção e documentário diminui: esse fato é verídico e os personagens do filme, como Santana e Marquim, ambos com marcas do episódio (o primeiro perdeu a perna e o outro tornou-se cadeirante), vivem seus próprios papéis. Além do mais, essas marcas nos fazem lembrar a todo instante do passado que implica diretamente no presente, dando ideia de não continuidade do tempo.

[3] A ironia descarada e cruel do diretor é constante. De agente terceirizado à vanguarda cristã assumindo o poder em 2070, passando pelo toque de recolher policial à noite (emitido via rádio) e passaporte para entrar no centro de Brasília.

[4] O texto do Repórter Popular sobre o filme de Eduardo Coutinho se encontra aqui: https://reporterpopular.com.br/cabra-marcado-para-morrer-reconstrucao-de-identidade-e-da-historia/

[5] Esse argumento está em um ensaio de Roberto Schwarz chamado “O fio da meada” in Que horas são?.