Anatomia da nova esquerda chilena: fim de um ciclo e promessas em aberto

Por Ignacio Munhoz

O resultado eleitoral a favor da nova esquerda foi bastante importante e, sobretudo, um sinal contundente de um fim de ciclo para a direita oficialista e para o duopólio político centro-esquerda/direita, que administrou o modelo neoliberal por longos anos. Com um universo total de votantes que alcançou os 6.334.581, foi um total de 42,5% do povo que votou ontem a nível nacional, o que também merece um análise importante e à parte. Há uma grande força de esquerda que está fora do mundo eleitoral, que não lhe interessa disputar o Estado, mas que foi decisiva para manter a mobilização social nos territórios e também o debate durante os longos dias de revolta social. Essa esquerda é cada dia mais forte e também é parte fundamental do profunda mudança política que agora o país esta começando a experimentar. Dessa esquerda, em outro momento, espero falar com maior calma e maior profundidade.

Dentro das forças da esquerda eleitoral, temos duas grandes vencedoras, uma nova e outra velha. A nova é chamada de “Revolução Democrática”, que foi fundada em janeiro de 2012 e é integrada majoritariamente por jovens entre 25 e 35 anos, que vêm das lutas estudantis de 2011. Esse campo nunca se sentiu próximo ao velho bloco da centro esquerda, como os últimos presidentes Lagos e Bachelet. Isso se dá basicamente por um motivo ideológico e de pautas políticas inegociáveis, como o apoio ao aborto em todas as suas causas; a reivindicação da educação como um direito universal e gratuito; além do fim das AFP, o sistema de aposentadorias privadas criado quase no fim da ditadura pelo irmão do atual presidente.

Pelo lado velho da esquerda, temos o Partido Comunista (PC), que teve uma importante vitória eleitoral. Ela foi menos ampla que a da Revolução Democrática em números e territórios, com certeza, porém foi até mais importante, já que a vitória da esquerda eleitoral é também a possível vitória de Daniel Jadue como candidato a presidente do Chile. Agora a pergunta que vem quase de forma natural: quem é Daniel Jadue em meio a esse cenário?

Jadue é militante do PC desde 1993, filho de imigrantes palestinos e defensor da luta palestina faz longos anos. Entre sua atividade política pela causa, se pode mencionar o cargo que ele teve na coordenação geral da Organização da Juventude Palestina da América Latina e Caribe entre 1991 e 1993. Atualmente ele é prefeito do bairro Recoleta, em Santiago, e ontem foi novamente reeleito com mais do 63% dos votos, numa nova mostra de sua popularidade. Essa estima foi inclusive importante na vitória da candidata comunista Irací Hassler, no bairro estratégico Santiago, que é simbólico no jogo político e que ficou por longos anos nas mãos da direita. Para que possamos ter uma noção da importância do bairro Santiago (na capital), basta dizer que ele é o coração das maiores marchas destes últimos anos, como também é o bairro onde ficam as escolas públicas com maior história em luta estudantil.

É difícil ainda ter uma noção profunda do impacto real que podem ter essas eleições, tanto para o futuro de uma nova constituição como para a eleição de um novo presidente ou presidenta para Chile este ano, sem falar do impacto mais amplo para todo o cenário político chileno. Não é só pela desconfiança na democracia burguesa, que teve seus nomes históricos rejeitados, mas também pelo fato de que um ciclo político de mais de 30 anos está chegando a seu fim.

Hoje uma nova esquerda tem a possibilidade de começar a cortar, pra valer, as profundas raízes que deixou o legado político-econômico da ditadura de Pinochet. Essa nova esquerda eleitoral não seria possível sem a agitação social, sem os dias infinitos de barricadas e protesto social por todo o país. Não seria possível sem o sangue de milhares de compas que foram sequestrados, torturados, mutilados e mortos pelo Estado ao longo destes anos. Não seria possível sem a luta das comunidades mapuches em resistência no “Wallmapu”, o território mapuche.

Nada se ganhou até o momento, além de poder nas estruturas atuais. Por isso cantar vitória pode ser perigoso demais. O triunfo nas urnas é um marco histórico simbólico para um país que foi sequestrado por longos anos, sim, mas ainda não é suficiente. Jamais podemos esquecer que o fim último não é ganhar o controle do Estado, mas sim construir experiências reais de poder popular, de democracia direta em cada território, e isso também é uma demanda popular real deste processo.

Ignacio Munhoz é imigrante Latinoamericano, pesquisador informal das lutas populares, amante dos chocolates e do Colo Colo. Serigrafista emergencial até novo aviso. Samba e rap fazem parte do seu equilíbrio espiritual. Colunas de opinião quinzenais sobre conjuntura Latinoamericana.