A revolta social no Chile: o desabamento das instituições e o fim de um ciclo histórico (parte 1)

O Chile está às portas de um plebiscito histórico, se nada misterioso se articular desde as trevas do governo de Piñera para evitá-lo. No dia 25 de outubro, o povo tem a chance de escolher o possível começo do fim do legado constitucional – e por consequência político – da ditadura, que organiza o país de maneira quase absoluta até hoje. Tudo isso só foi possível graças à revolta social do 18 de outubro do 2019, a qual se alastrou por todo o território chileno durante longas e alegres semanas.

Tentar desvendar, em partes, como se chegou a esse inesquecível dia 18, e sobretudo como essa revolta é o novo articulador da política nacional, tanto institucional como não-institucional, é a missão que alimenta esta coluna, a qual tentarei desenvolver de uma forma organizada por capítulos. Terei a liberdade de contar a historia com rigorosidade, mas não com a ortodoxia e a formalidade que a academia nos propõe. A história do Chile se define pelo golpe de estado e se redefine, ou pelo menos começa a se redefinir, depois da revolta social. Isso é inquestionável.

Mas para continuar nessa viagem pelo presente, passado e futuro do Chile, é preciso entender a importância do plebiscito, suas limitações, bem como alguns detalhes técnicos da – em breve – antiga Constituição. Não pelo fato de amar leis, nem menos o estado, mas pela ausência programada e quase absoluta de justiça, de presença do estado e suas respectivas consequências, num país onde a desigualdade e o livre mercado foram institucionalizados por uma elite saudosa da ditadura. Um setor que agora atua envergonhado perante a ditadura e suas violações dos direitos humanos, porém não se envergonha da sua máxima lembrança e herança, a Constituição de 1980.

Agora é momento de entender o processo atual do plebiscito e suas projeções numéricas, como também entender por que se faz necessário este processo. A Constituição de 1980 foi um fruto concebido para ser imaculado e assim poder operar com total domínio legislativo, ainda que as forças adversárias fossem maiores que ela no território e momento em questão. Em outras palavras, uma obra jurídica que atua na prática como uma cláusula pétrea, com capacidade de olhar para o futuro, pois ela foi pensada olhando para o futuro. Sem dúvida, uma obra sinistra da ditadura e, sobretudo, de um de seus maiores ideólogos, Jaime Guzmán.

Novo Plebiscito: a esperança de uma real democracia e o fim da armadilha constitucional

A esperança de uma possível mudança constitucional é esperada com muita expectativa pela grande maioria do povo e, pelo que mostram as enquetes, a opção de Aprovação + Convenção Constituinte vai vencer por uma margem de 70% de apoio. Isso levará a um processo de dois a três anos para redigir a nova carta constitucional que guie o país. Até agora, salvo algumas reformas feitas em democracia, as quais são bem menores, a ditadura continua guiando o horizonte da política nacional em termos de administração pública e políticas de estado.

Isso ocorre pois ela foi criada propositalmente para operar como um cadeado jurídico e burocrático, o qual seria quase invulnerável, até na democracia. Tal maestria na elaboração da carta constitucional foi obra de Jaime Guzmán, fundador do partido político de direita UDI (União Democrata Independente). Para não cair em excessivos detalhes que façam da leitura deste artigo um motivo de soneca, mencionarei simplesmente, a modo descritivo, os percentuais que geram o cadeado de proteção desta constituição e que tornam impossível qualquer modificação da mesma. No âmbito das reformas constitucionais, os percentuais requeridos para qualquer modificação são de 2/3 ou 3/5, segundo o caso. Ou seja, precisa-se de um consenso impossível de se obter nas atuais condições orgânicas das forças políticas burocráticas.

Se continuamos na linha de explicar o cadeado deixado pela ditadura via Constituição de 1980, é importante falar sobre o caso das Leis Constitucionais Orgânicas, as quais são 18, e são um complemento do texto da Constituição. Elas são responsáveis por regular temas específicos, como o funcionamento do Tribunal Constitucional, Concessões de Mineiração, Estados de Exceção, Votações Populares, Lei Geral de Educação, entre outros temas. Estas leis se distinguem por precisar da aprovação de 4/7 dos senadores e deputados para sua reforma, ou seja, um quórum qualificado novamente impossível de conseguir, pois basta que a metade do senado, que é de direita, se oponha à reforma, e já automaticamente se acaba a opção de gerar alguma modificação na lei orgânica.

É muito importante entender, em todo este sistema, que o cadeado institucional que representa a Constituição do 80 no Chile se fortaleceu durante longos anos por um sistema eleitoral binominal, o qual também foi criado por Jaime Guzmán no final da ditadura, no ano de 1989, com o objetivo de gerar um duopólio político, entre direita e “centro-esquerda”. Basicamente, o sistema eleitoral binominal operava dando vagas no poder legislativo aos blocos mais votados em cada eleição e não necessariamente aos candidatos(as) mais votados(as) de maneira individual, gerando com o tempo a erosão sistemática da credibilidade de dito sistema e, por consequência, de todo o sistema político. Isso permaneceu até o ano de 2015, quando foi extinto na gestão de Michelle Bachelet.

Entender o aspecto jurídico e institucional do Chile se faz importante para a elaboração de qualquer análise que seja séria e responsável. A revolta social tem uma série de fatores que a motivam e que têm direta relação com a constituição política da ditadura. O próximo capítulo deste artículo terá uma análise de como a “centro-esquerda chilena” aprofundou o modelo neoliberal e fez da elite um grupo de poder econômico e político capaz de ditar as pautas da sociedade sem contrapeso real. Até pode ser que encontremos similitudes em algumas etapas do processo chileno com a era Lula e sua triste conciliação de classes.

A foto é da Frente Fotográfico.

Ignacio Munhoz é imigrante Latinoamericano, pesquisador informal das lutas populares, amante dos chocolates e do Colo Colo. Serigrafista emergencial até novo aviso. Samba e rap fazem parte do seu equilíbrio espiritual. Colunas de opinião quinzenais sobre conjuntura Latinoamericana.