Construindo a República do Céu: Fronteiras do Universo de Philip Pullman

Lyra é uma garota única. Claro, nem sempre conhecemos uma órfã criada em um campus universitário com uma grande capacidade de inventar mentiras, e que faz amizade com bruxas, ursos encouraçados e ciganos que vivem em barcos. Mas o que torna Lyra especial desde as primeiras páginas é Pantalaimon, o seu daemon ou daimon a depender da tradução.

Pegando a palavra e parte do conceito emprestado da mitologia grega, Pullman criou um recurso simples, profundo e muito eficaz: no mundo de Lyra, parecido com o nosso de uns dois séculos atrás, a “alma” das pessoas é projetada fisicamente na forma de um animal desde o nascimento. Durante a infância ele pode assumir qualquer forma de bicho, pra se fixar apenas na puberdade em que assume instintivamente a forma de animal que melhor representa o humano. As combinações possíveis são das mais diversas, e o autor consegue brincar muito bem com elas.

Outros elementos importantes que encontramos logo no primeiro livro são o ‘aletiômetro’ que é uma espécie de bússola-oráculo que como o I Ching indica o que está para ocorrer a quem sabe lê-lo, e que Lyra descobre ter a habilidade de conseguir intuir seus significados; e o Pó.

O Pó é uma espécie de poeira dourada que cobre os seres humanos adultos e que pode ser visto apenas com um determinado tipo de fotografias. Esse mistério é descoberto por Lorde Asriel, tio de Lyra, assim como a possibilidade da existência de outras dimensões.

Enquanto Asriel e a Igreja competem e disputam para quem irá conseguir desvendar o mistério ou destrui-lo (afinal esse Pó é uma heresia), Lyra se une à uma expedição do povo gipcio, nômades das águas, rumo ao Polo Norte em busca de suas crianças que vem sendo raptadas e desaparecidas.

É assim que no Norte Lyra irá se meter nas lutas de clãs de bruxas assim como em um urso encouraçado exilado de seu povo, e seu amigo texano piloto de balões, pra terminar o primeiro livro descobrindo um complô sórdido e atravessar uma janela… para outro mundo!

Mas não acaba por aí, porque estou falando não de um livro só, mas de uma história que na verdade é uma trilogia. Nos livros seguintes a trama se desenvolve e ganha mais personagens, como Will um garoto do nosso mundo que acaba virando o portador de uma lâmina capaz de cortar o ar e abrir janelas para outras dimensões, e a física Mary Malone que recebe uma missão complicada: quando o tempo chegar e a Autoridade divina for derrubada após a rebelião dos mundos, Mary deverá ser e atuar como a serpente no mito do Éden. Só que claro, aqui estamos falando de uma reinterpretação bastante ousada, libertária e herege sobre esse episódio da Eva, a Cobra e a Maçã. Não é a toa que foi alvo de ataques por Vaticano que expressou seu desejo de proibir os livros, que além desse episódio crucial tem a Igreja como organização sem escrúpulos e opressora, anjos homossexuais e uma batalha para por um fim à tirania do reino dos céus como pano de fundo.

A trilogia Fronteiras do Universo (His Dark Materials) foi escrita pelo britânico Philip Pullman e é composta pelos volumes A Bússola de Ouro, A Faca Sutil e A Luneta Âmbar – publicados entre 1995 e 2000. É uma história que carrega a gente sem que façamos ideia do que de fato estamos indo testemunhar. Contado de maneira muito simples, a história possui uma série de metáforas e momentos emocionantes, como a viagem de Lyra e Will para o mundo dos mortos e como e porque decidiram abandonar aquele lugar e libertar os espíritos para onde deita o orvalho.

Já li essa trilogia duas vezes e é realmente uma obra que foi muito importante pra mim e que tenho certeza também o será para quem se importa com os seguintes pontos, além de gostar de mitologias, fantasia, ficção científica, personagens cativantes e um bom enredo que nos emociona:

  • anticlericalismo, desconfiar sempre de quem quer estabelecer relações de propriedade sobre a fé e os mistérios mundo, essas instituições que não passam de tirania;
  • a importância de contar histórias, sempre, são elas que nos fazem e que nos movem;
  • a beleza da pluralidade, seres dos mais diversos que porém podem se encontrar em um espaço comum e dar tudo de si em uma luta conjunta, criando laços que rompem qualquer estagnação das nossas relações sociais com pessoas que tendem a ser iguais a nós.

No fim também é uma história sobre no fim ter que reaprender tudo de novo, uma coisa que acontece e na qual não há nenhuma humilhação, pelo contrário.

Livio