A montagem no cinema

A leitora e o leitor mais atento dessa coluna devem ter percebido que, recentemente, tenho feito textos cujos títulos são básicos: o x no cinema, o y no cinema, etc. A ideia é pegar um elemento central da forma filme e analisá-lo, expor exemplos de filmes que ao largo desse pouco mais de um século de cinema marcam época por tal elemento, e assim por diante. É claro que o título generalizante pode dar uma idéia muito ampla, e posso incorrer no erro de querer falar de todo o cinema sem levar em conta sua variedade. Mas deixo avisado que não é isso. O objetivo é comentar distintas partes que compõe estruturalmente um filme e apresentar quando isso foi muito bem executado.

Para lembrar rapidamente: um filme é, grosso modo, a filmagem de imagens, que em movimento, montadas em uma sequência, contam uma história, apresentam uma idéia, etc. Desde meados da década de 40 já existe o recurso sonoro, que rapidamente se incorporou à estrutura elementar de um filme. Só aqui temos 2 elementos diferentes, que se complementa na forma final: as imagens e a sua sequência (desconsiderando, agora, o som). Quanto às imagens, prestamos atenção em: a) cenário que foi utilizado; b) nas atuações dos atores e atrizes; c) na movimentação destes naquele (a famosa expressão em francês mise-én-scène, termo que vem do teatro para expressar os movimentos dos atores no palco); d) na fotografia, ou seja, de que modo são os enquadramentos, os movimentos de câmera, a iluminação, que também tem a ver com cenário, etc.

Já para a sequência de imagens, que é nosso foco hoje, botamos atenção em: a) como são os cortes de imagem para imagem, se são “secos”, ou se são daquele modo chamado fade in ou fade out – estamos falando aqui da transição de uma imagem à outra; e b) qual o sentido entre as imagens que vemos, por que uma apareceu depois daquela imagem em especial, existe algum sentido na relação entre essas imagens, da que antecede com a que a sucede? Estes são os elementos. Para explicar em linhas gerais: o corte seco, digamos assim, é aquele no qual simplesmente uma imagem dá lugar à outra – esta é a transição mais costumeira em filmes, é a mais simples e a que indica continuidade, fluxo da narrativa, simples assim: depois desta cena/imagem vem aquela outra e assim por diante. Os fades são quando de uma imagem para a outra vemos a tela escurecer: se chama fade in quando vai da tela preta para a imagem, muito usada em início de filmes, do preto vai para a  imagem, começando assim uma história; o fade out é o contrário, quando vai da imagem para a tela preta, como um desfecho – esta é, claro, muito usada para encerrar os filmes.

Mas tudo isso de um modo corriqueiro, o amplamente usado e que não merece atenção, pois seu uso é protocolar, não possui um sentido para a narrativa, não construiu para o significado da cena, da progressão da cena, enfim. Vamos a alguns exemplos de boas montagens, bons cortes, cenas que, por causa da montagem, e aqui entra a questão do corte/transição de cena, adquirem um significado interessante, inesperado.

O diretor de cinema que, se não a criou, ao menos foi um dos principais realizadores da montagem cinematográfica, é o russo Serguei Eisenstein. O seu clássico filme O encouraçado Potemkin (1925) tem uma cena que se tornou clássica como o filme pelo exímio uso da montagem: a famosa cena do carrinho de bebê. Não lembro bem o que estava acontecendo no encouraçado Potemkin na cena, mas o cenário é o seguinte: uma revolta ou algo parecido, uma tensão, uma confusão acontece no navio, que está ancorado no porto (isto à direita da nossa imagem, imaginando o cenário do filme); eis que a confusão acontece no lado de fora também, no porto e arredores, e para a nossa esquerda (o cenário na tela do filme) há uma grande escadaria, mais alta e extensa que a da Igreja Nossa Senhora das Dores em Porto Alegre. De repente, um carrinho com um bebê dentro se perde da mãe e vai em direção à escadaria, e está prestes a cair. É claro que o desespero da mãe, junto à elevada tensão da cena como um todo, é muito angustiante. Aí Eisenstein se perguntou como faria para transmitir, pelas imagens do seu filme, essa angústia? É um filme de verve realista. A escolha genial e pioneira do diretor foi intercalar as imagens do carrinho de bebê caindo com a de um close da mãe em desespero, junto ainda com a confusão geral que acontecia no local. A justaposição dessas três imagens, alternada e repetidamente durante um tempo (mesmo se durasse 5 segundos a sensação seria de horas) foi o grande trunfo do diretor, que fez uso da montagem, porque montou a cena desse modo, intercalando, numa cena completamente fragmentária e não contínua, cheia de pausas, elevando a tensão porque não sabemos o que vai acontecer, e pela intercalação a cena parecesse durar mais que o normal.

É uma cena fantástica, cujo desfecho não posso indicar pois seria sem graça com quem não viu o filme. Se trata de uma das mais famosas cenas do cinema, uma cena que só foi possível pelo uso criativo da montagem, o ato de colocar uma imagem depois da outra, ato que dá um sentido para o filme através da montagem. Haveria outros filmes a comentar, penso aqui em Persona de Ingmar Bergman, O poderoso chefão, de Coppola, ou de 2001, do Kubrick. Estes e mais outros serão tema de um próximo texto.

Rodrigo Mendes