Com um pouco de sorte: “A História Sem Fim” de Michael Ende

A promessa de uma história que não acaba nunca é sem dúvida algo que muita gente já desejou, especialmente se tem crianças que pedem o tempo todo para repetir uma história e colocar de novo um filme. Virou inclusive um problema na sociedade moderna, em que as séries devem lidar com a extensão de temporadas ao infinito ou enfrentar a ira dos espectadores, pra não falar do loop de remakes no qual as vezes certa indústria parece atolada. Mas essa é outra história e terá de ser contada em outra ocasião.

Com o tempo passei a gostar dos finais, dos encerramentos, e de novos começos, mas não dá para não entender e simpatizar com Bastian quando frente a um livro que não acaba nunca, ele acaba roubando-o. E claro, se esconde no sótão da escola para poder ler. O que me lembra de quando matava aula na biblioteca. Mas essa é outra história e terá de ser contada em outra ocasião.

Assim começa “A História Sem Fim”, escrita pelo alemão Michael Ende e publicada em 1978. Bastian — uma criança vítima de bullying, solitária, sem nenhuma habilidade de destaque, gordinho, cuja mãe morreu e o pai não dá atenção – começa a ler tal livro, adentrando-se pelos recantos do mundo de Fantasia e na missão de Atreiú e Fuchur para salvar seu mundo do esquecimento e da destruição, do “Nada” que avança fazendo desaparecer as terras e povos de Fantasia.

Esse inimigo misterioso, vazio e inexorável é o oposto da variedade e magia que povoa Fantasia, e é o tema central da primeira parte do livro. Uma certa alusão ao processo de terra arrasada empreendido pela modernidade ao longo dos últimos séculos de revoluções industriais conduzidas sob a bandeira do liberalismo. Afinal não foram aniquilados povos inteiros para se conformarem à pureza da identidade nacional? Territórios ameaçados, biomas destruídos e espécies extintas para dar lugar a um único tipo de progresso? Vivemos em um mundo que aplica a monocultura não apenas na agricultura, mas na política, na cultura, em tudo! E mesmo quando joga com uma pretensa livre escolha, com uma certa variedade de opções, de produtos, é visível por trás da máscara o sorriso macabro do capital. Não é disso que trataram os megaeventos e suas políticas de despejo de inteiras comunidades para que em seu lugar estejam estacionamentos? Mas essa é outra história e terá de ser contada em outra ocasião.

Na segunda parte do livro acontece outro sonho de todo leitor e leitora: Bastian se encontra EM Fantasia, DENTRO da história do Livro! Por vir dessa nossa dimensão da “realidade”, Bastian tem o poder para dar vida as coisas em Fantasia a partir de sua própria imaginação e capacidade de contar histórias. Ele diz algo e puf, aquilo que ele contou existe. É dessa forma que ele pode então salvar Fantasia, inventando histórias e contando elas em voz alta, a ação do Nada é anulada e a imaginação de Bastian permite o renascimento do mundo de Fantasia.

Um poder que Bastian se dedica em usar ao máximo de suas capacidades, transformando-se assim no Herói, no grande salvador e de certa forma criador de um novo mundo. O que acaba fazendo com que ele seja tomado pela soberba, pela arrogância, chegando a esquecer quem era antes.

Não foi por acaso que escolhi este livro para começar a coluna. Eu li “A História Sem Fim” bastante ‘tarde’, no inicio da vida adulta e da graduação, e me fez um bem danado, talvez até mais do que ter lido quando criança. Voltar para suas páginas pela coluna foi um grande prazer, revivendo as cores vivas de uma miríade tão grande de povos, territórios, situações e histórias. A imaginação de Michael Ende é incrível, potente, delicada, irônica e engenhosa. Em nenhum momento renuncia ao caráter de ‘conto de fadas’, mas isso não torna a história menos viva e pulsante de realidade.

Para mim este é um dos grandes clássicos, um dos pilares do gênero de fantasia. O que acontece é que diferentemente da maioria dos livros do gênero, “A História Sem Fim” corre riscos. É o oposto daquilo que podemos chamar de fantasia mercadorizada, que não inventa nada, apenas imita e banaliza estereótipos. As escolhas morais causa de profunda perturbação são retocadas, tornadas agradáveis e seguras.

A fantasia capitalista explora a insuperável imaginação de crianças e adultos. Com as criaturas de Fantasia, no mundo dos homens se fazem os maiores negócios, são desencadeadas guerras e se fundam impérios. Essa imaginação da qual o capitalismo se aproveita é como a força de trabalho, subjugada ao domínio, mas que tem potencialidade para ser maior e pode sim se libertar dessas correntes. A imaginação é viva e vive graças à mudança, pode ser cooptada e degradada mas mesmo assim sobrevive à exploração comercial e ideológica. Os mundos do “Era uma vez” fazem parte da nossa história humana tanto quanto as nações que construimos. Por mais que os mitos e as lendas mudem, assim como muda o jeito de imaginá-las, nossa espécie nunca deixou de inventar e contar historias, que refletem com veracidade o mundo em que vivemos.

A “História Sem Fim” não cai nesse padrão, pelo contrário, aceita todos os riscos de a partir de elementos comuns de fantasia trilhar um próprio percurso que chega a desafiar o Herói (sobre o qual falava no texto de introdução à coluna). Mas também não é só sobre isso, é uma bolsa que parece nunca exaurir seus conteúdos e possibilidades de seres, acontecimentos e lugares.

Também é notável a narração dupla, uma espécie de metalinguagem, em que ao mesmo tempo que acompanhamos a história que se passa em Fantasia acompanhamos o processo de leitura de Bastian ao longo da primeira parte.

Eu gostaria muito de entrar nos detalhes do Pântano da Desolação, da Cidade dos Fantasmas, Xayde, o Velho da Montanha Errante, a Imperatriz criança, as Águas da Vida, a Morte Multicolor, o Mosteiro das Estrelas, o Lago das Lágrimas, a Cidade dos Antigos Imperadores e até mesmo mais sobre o pele-verde Atreiú e o dragão da sorte Fuchur. Mas aí além de me alongar é arriscar a fogueira pelo tribunal anti-spoiler. Vai depender do retorno de vocês que leem a coluna, quem sabe mais pra frente não voltamos nesse livro? Afinal, é uma história infinita, podemos voltar nela sempre que quisermos.

Voltando ao enredo, é apenas despindo-se da arrogância que Bastian pode começar a voltar ao mundo humano, à sua realidade. Porém para que possa voltar ele deve terminar todas as histórias que começou a contar e que não terminou. O que é praticamente impossível visto quantas são. E aí, como será que “termina” (entre aspas porque afinal é uma história sem fim) esse livro? Aí é com você, que com um pouco de sorte ficou com vontade de ir ler.

Curiosidades

Em 2019 o centro social libertário XM24 da cidade de Bologna (Italia) adotou a simbologia da História Sem Fim para promover uma massiva campanha de defesa do espaço frente o processo de despejo. As manifestações que percorram a cidade reuniram tantas pessoas de tão diferentes origens e realidades que pareciam de fato reunir os habitantes de Fantasia. “Fantasia é antifascista” diziam os adesivos com a imagem do amuleto Auryn em cores rubronegras, e o principal eslogan “Contra o Nada que avança” acusava as políticas da especulação imobiliária. Durante o despejo vergonhoso não deixou de brilhar a criatividade e irreverência da companheirada, e gigante foram as manifestações de solidariedade.

Quando foi feito o primeiro filme o autor Michael Ende pediu aos produtores que mudassem o nome do filme, mas frente à recusa ele acabou processando os produtores. Acabou perdendo o julgamento, conseguindo apenas conseguir que tirassem seu nome dos créditos iniciais. Mas essa é outra história e terá que ser contada outra vez. O debate dos livros que viram filmes é complexo e aqui vou me limitar a dizer o seguinte: cinema e literatura são duas formas diferentes de arte, então não dá pra exigir uma cópia absoluta de um do outro. A arte da adaptação acredito ser conseguir traduzir os conteúdos de um formato para o outro, o que nem necessariamente é seguir a história do livro linearmente. Então o filme até é bacana e realmente tem momentos icônicos que ficaram marcados na infância de quem assistiu e que de fato estão no livro. Mas o central da História Sem Fim não está presente, em verdade o livro trata apenas da primeira parte e com um final bastante remendado. Existem inclusive dois outros filmes, que fogem ainda mais do conteúdo do livro e que portanto nem vou me dar o trabalho de comentar. Até porque já existe uma coluna de cinema nesse site.

Livio