A especulação imobiliária contra, não só nossa moradia, mas também nossa memória

Texto de opinião do setor de comunicação do Movimento de Organização de Base – RJ

A recente descoberta de um diverso acervo histórico-cultural em um imóvel ocupado em Copacabana é só mais um exemplo de como as questões habitacional e histórico-culturais estão intrinsecamente interligadas

No histórico bairro de Vila Isabel, terra de Noel Rosa, um velho hotel faliu e fechou as portas, como é recorrente com inúmeros comércios e demais empreendimentos de pequeno e médio porte que não resistem à crise. Entretanto, como sempre no sistema capitalista, os mais atingidos por esta crise são sempre os mais pobres e vulneráveis, o que é claramente perceptível pelo imensurável aumento de moradores de rua nas grandes capitais do país, nestes últimos anos. Com isso, o prédio do hotel em questão, após passar anos abandonado, é ocupado por pessoas que estão necessitando de um teto para morar. Assim surgiu a Ocupação Elza Soares.

 

Entretanto, o capital nunca pensa de forma igualitária, e a Justiça está aí para garantir os injustos interesses da burguesia. Afinal, não importa quantos anos um imóvel esteja abandonado ou deteriorado. Basta que alguns sem-teto busquem efetivar seu direito à moradia por suas próprias mãos ocupando tal imóvel que, logo logo, surge o seu proprietário, reivindicando seu intocável direito de propriedade, acionando a Justiça para colocar novamente os ocupantes na rua, acorrentar ou entijolar as entradas e restituir a habitação do espaço aos seus “legítimos” donos: a poeira, o ácaro, o mofo e a deterioração.

Assim ocorreu com a Ocupação Elza Soares, ocupação de moradia filiada à Frente Internacionalista dos Sem-Teto (FIST). Após um ano de ocupação, com seus moradores se organizando por meio de assembleias para garantir a limpeza e a manutenção do espaço, no dia 10 de julho de 2019 os ocupantes foram colocados na rua pela Polícia Militar e os portões trancados. Felizmente, boa parte das pessoas despejadas foram realocadas em outras ocupações, graças ao apoio da Frente Internacionalista dos Sem Teto – FIST, que estava assessorando a Ocupação juridicamente; e outros movimentos políticos que estavam envolvidos no caso. Dentre estes, a Casa Nem, um coletivo que acolhe pessoas LGBTs em situação de vulnerabilidade, que integrava a Ocupação Elza Soares e, na sexta-feira da semana retrasada (19/07), se alojaram em uma recente ocupação de um prédio abandonado em Copacabana.

Neste cenário que, depois da exploração de novas áreas do prédio em que iam se alojar os novos moradores, foi encontrado um vasto acervo artístico e arqueológico entulhado no sótão do edifício. Dentre os objetos encontrados estão bustos de bronze e de mármore, quadros, animais empalhados, objetos de provável valor arqueológico como flautas indígenas, ferramentas rudimentares, ossadas, dentre outros. Os objetos estavam soterrados na poeira e estão em grande medida deteriorados. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) está avaliando o valor das peças e o que ainda é possível recuperar e aproveitar.

Toda esta situação, envolvendo especulação imobiliária, abandono de imóveis e ocupações, está longe de ser um mero caso isolado. No atual cenário pelo qual passa o país, como passar a pé pelos bairros, sejam centrais ou periféricos, das grandes cidades e não perceber os imóveis fechados, com correntes nos portões ou mesmo muros de tijolos no lugar destes? O questionamento mais comum, por uma óbvia questão de prioridade, sempre é “Quantas pessoas poderiam ser abrigadas aqui?” Entretanto, algo também a ser levado em conta, de forma secundária, é também o que pode estar sendo perdido no que diz respeito à memória, história e cultura, com aquele abandono. Qual será a história daquele edifício que poderá ir abaixo a qualquer momento com a deterioração do tempo? O que será que se encontra dentro dele?

Recente episódio envolvendo tanto memória quanto moradia foi o caso da “recuperação” da região portuária do Rio. Nos anos de 2013-2014, inúmeras pessoas que ocupavam “irregularmente” os imóveis abandonados da região acabaram ficando sem casa por meio do processo de gentrificação promovido no local, com o advento dos grandes eventos como a Copa e as Olimpíadas. Ademais, concomitantemente a este prejuízo social, também ocorreu a grande polêmica do VLT, meio de transporte implantado no Rio também com o advento dos grandes eventos e voltado, claramente, ao turismo na região, passando por cima do antigo Cemitério dos Pretos Novos, sítio arqueológico de suma importância para a memória da população negra da cidade. Como sempre, a pressa do capital há de passar por cima de quaisquer direitos do povo, seja à moradia ou à memória.

Esta é só uma breve explanação de todo um complexo de ocorrências desta época. No período de preparação para os megaeventos esportivos, aproximadamente 22.059 famílias foram diretamente removidas de suas casas pelo governo municipal do Rio de Janeiro. No caso da favela do Morro da Providência, também na zona portuária, famílias foram removidas nesse período pré-megaeventos para que pudessem construir um teleférico, inaugurado em 2014, este que, ironicamente, não funciona desde 2016. Neste caso, ainda, a regularidade do proprietário em relação ao seu imóvel não evitou a expulsão, pois muitos desses moradores possuíam devidamente o título de propriedade de suas casas. Além disso, depois da reestruturação das áreas centrais da cidade, aqueles que não foram removidos diretamente pela Prefeitura, tiveram dificuldade de se manter, tendo em vista o aumento do custo de vida e dos preços dos aluguéis no Rio de Janeiro como um todo, principalmente no centro, pela gentrificação.

Para ilustrar ainda mais, válido mencionar a descoberta do Cais do Valongo, que foi um empecilho no decorrer das obras na mesma região para aqueles interessados em terminar as reformas a tempo para os megaeventos. Recuperado por pesquisadores do IPHAN — que foi alvo de cortes pelo atual governo — e também defendido pelos moradores da localidade, o Cais do Valongo representa a retomada da narrativa histórica por muito tempo apagada, conectando aqueles que moram nos arredores à história que construiu a região. É esse o poder que tem a memória: ela conecta o trabalhador à sua cidade.

Exemplos não faltam. Apenas próximo ao cotidiano do singelo movimento que assume a autoria deste texto, além da experiência da Elza que também acompanhamos de perto, podemos citar o caso do Centro de Cultura Social – RJ, da mesma vizinhança. Um prédio histórico que hoje abriga como sede, um centro comunitário. Há muito tempo atrás esse prédio abrigou temporariamente moradores do Morro dos Macacos cujas casas foram destruídas por chuvas e deslizamentos. O CCS-RJ acolheu e acolhe diversas iniciativas populares como cooperativas de produção de bolos, brechós solidários, grupos de reciclagem, e é também um dos espaços onde o MOB-RJ organiza o Pré-vestibular Comunitário Solidariedade, além do espaço estar aberto a diversos movimentos sociais. Até final do ano passado, toda a região de Vila Isabel passou a sofrer forte pressão da especulação imobiliária com apoio da prefeitura. O IPTU do prédio do CCS e dos imóveis vizinhos aumentou de maneira desordenada, privilegiando a iniciativa privada, sempre faminta por transformar espaços coletivos em espaços privatizados.

Caso não houvesse organização coletiva, esses espaços históricos seriam rapidamente transformados em algum condomínio de classe média ou algo parecido, como ocorre de forma crescente na região da Grande Tijuca, na qual localiza-se o bairro de Vila Isabel. Por solidariedade dos companheiros e trabalhos autogeridos e de financiamento independente de empresas e governos, conseguimos manter esse importante espaço comunitário.

Outro exemplo ainda mais marcante também da realidade do MOB, ainda que não no Rio, é o do Espaço Comum Luiz Estrela, uma ocupação cultural em Belo Horizonte (MG), e no qual o MOB-MG constrói o Cursinho Popular Afirmativa. O casarão do Espaço foi ocupado em 2013, após 19 anos fechado, por artistas e educadores e nele foi descoberto um sítio arqueológico horripilante. Até a década de 1980, o prédio em questão foi um hospital de Neuropsiquiatria Infantil: basicamente, um manicômio de crianças. Ao adentrarem o espaço, os ocupantes se depararam com desenhos nas paredes, sapatos e brinquedos de crianças, bulas de remédios, tudo das crianças “pacientes” do hospital, que eram submetidas a tortura, ao choque elétrico e a inúmeros horrores, conforme relatado por uma série de reportagens. O local, entretanto, estava sob sérios riscos na estrutura até a ocupação e só foi recuperado pelos esforços dos ativistas envolvidos, estes que se dedicaram com todo o suor para garantir tanto a restauração do espaço quanto a preservação da memória de suas tenebrosas ocorrências. A ideia do governo estadual, até então proprietário do prédio, era transformar o local em um memorial do ex-presidente Juscelino Kubitschek, que atuara no local como médico quando, antes de se tornar um manicômio, era um hospital militar. Felizmente, tal cenário foi revertido e a memória coletiva dos/as de baixo venceu a memória institucional dos de cima.

Espaço Comum Luiz Estrela

Não é nenhuma novidade para ninguém que existe um sistemático descaso por parte do poder público tanto em relação a questões habitacionais quanto à preservação de memória. Não há como mencionar este último, por exemplo, sem lembrar do calamitoso incêndio do Museu Nacional do ano passado, fruto da omissão de diversos governos e da sanha do neoliberalismo no Brasil. O problema da moradia é perceptível com uma breve volta no quarteirão em qualquer grande cidade, em que pode-se notar tanto o preocupante cenário dos moradores de rua quanto os numerosos imóveis vazios que preenchem as grandes capitais. Existem prédios e casas vazias tanto quanto existem trabalhadores sem-teto, e a crueldade é que essa aberração não é por acaso. Resumindo o problema, imóveis vazios são lucrativos para os especuladores, e o cenário político atual incentiva essa acumulação irrestrita do capitalista sobre a miséria do trabalhador. Ademais, qualquer coisa que atrapalhe esta acumulação via especulação imobiliária é perseguido sistematicamente pelo Estado, assim penam os movimentos de ocupações desses imóveis, assim como a recuperação da memória e da história da cidade.

Portanto, fica perfeitamente ilustrada quais são as prioridades do modelo de cidade que o Rio de Janeiro representa. A cidade neoliberal não faz questão de esconder a quem serve e não mede esforços para que a sua lógica acumulativa se reproduza às custas da desapropriação do trabalhador, ora diretamente pela remoção, ora simbolicamente pelo apagamento da memória local. A noção de pertencimento, de vínculo, por outro lado, desafia aqueles que preferem especular sobre imóveis vazios e sem história, estes que não nos contam nada além da crueldade do sistema econômico em que vivemos, com sua lógica perversa e estruturalmente excludente, em que tudo se justifica pelo capital. Um povo sem moradia, por estar a todo momento em constante batalha pela própria sobrevivência, é um povo com maior dificuldade de se organizar e lutar por seus direitos, assim como é o caso de um povo sem memória.